31/12/09

2010

BOM ANO A TODOS!

E na sequência do lugar da foto, remeto-me para um poema de José Agostinho Baptista, um poeta maior dos nossos dias:

Permanência

Prolongas, à volta de uma ilha, as nefastas raízes da própria dor.
Um veleiro passa ao largo da cidade, mas permaneces
frente para a cal.
Há uma lenda sem fim sobre as tuas mágoas.
Quem acode à densa névoa, ama-te de tão longe.
Um marinheiro esquece-te, embriagadamente.
Os girassóis voltam-se para o sul.

26/12/09

Natal, do Torga

Leio o teu nome na página da noite:
Menino deus...
E fico a meditar
No milagre dobrado
de ser deus e menino.
Em deus não acredito
Mas de ti como posso duvidar?
Todos os dias nascem
meninos pobres em currais de gado.
Crianças que são ânsias alargadas
De horizontes pequenos.
Humanas alvoradas...
A divindade é o menos.

Miguel Torga

Miguel Torga, um dos gigantes da nossa poesia , foi insigne em toda a sua obra, mas os seus poemas e contos alusivos ao natal são, para mim, insuperáveis...e ao cruzar-me há pouco com este, não resisti a transpô-lo para aqui.
Este natal do Torga, é também um bocadinho meu...

24/12/09

Boas Festas!

... E, a haver prendas, que seja uma das melhores do mundo: os livros!

23/12/09

Manual do perfeito mendigo

Gesto pedindo clemência
cansa.
Modernizem a desgraça.
Ser pedinte com eficiência
é alugar uma criança
e arremessá-la aos olhos de quem passa.

Quem fala de caridade
usa a velha ferramenta
e compromete o seu papel.
Para comover a cidade
preguiçosa e sonolenta
só a criança de aluguer.

Só a criança. De baixo custo.
É pitoresca ou inefável,
sabe chorar, sabe sorrir,
exprime o pavor, o medo, o susto,
é facilmente transportável
e faz o drama explodir.
Pagam os homens comprometidos
para não verem na sua frente
os mendigos alugados,
que falsas mães, de olhos doridos,
silenciosas, mostram à gente,
como brinquedos mutilados.

Sidónio Muralha

Imagens de crianças pedintes e manipuladas por "falsas mães" ou outros traficantes de infâncias, perpassam tantas vezes por nós. Hoje, quando fui tomar um "copo natalício" com colegas, fui assolada por várias, no estacionamento, que me estenderam as mãos num apelo material e o olhar numa invocação da infância que nunca terão... Alegaram que se não lhes desse "uma moeda" seriam sovados em casa.
Porque todos temos responsabilidade, que não se hesite em ligar para o SOS Criança quando se se deparar com uma situação que implique qualquer risco para uma : 800 20 26 51 ou 21 793 16 17 (de qualquer região do país).
De imediato entrarão em contacto com a PSP, que por sua vez se encaminhará para o local e orientará a situação para instâncias judiciais. Foi o que me informaram.

20/12/09

Natal para todos?

Recebi há pouco um e-mail a dar conta de uma greve no sector das grandes superfícies alimentares (hipermercados e supermercados) agendada para o próximo dia 24 de Dezembro. Esta greve vem na sequência de uma resolução (desavergonhada) que propõe, a grosso modo e em termos práticos, o comando da vida, não só profissional mas também privada e familiar de milhares de trabalhadores. Ou seja, legaliza, por exemplo, que aos trabalhadores seja exigido, de véspera, o acréscimo de horas (gratuitas) ao seu horário normal de trabalho. Com o falso argumento de que pretendem regulamentar o horário fixo dos funcionários, exigido por lei, impõem-lhes (obrigam-nos a ...) um banco de horas (?) que lhes desregula diariamente os horários de trabalho e , claro, os familiares, até porque face a esta "proposta" das empresas de distribuição, estas pessoas podem trabalhar 12 horas durante dias a fio, com o exigível horário de descanso intercalar de uma ou duas horas... o somatório são 14 horas diárias entregues ao trabalho , mais o tempo de deslocação ao mesmo, ou de retorno a casa, o que perfaz um tempo incontável e inadmissível de privação familiar, com todas as consequências sociais ( e de saúde) que se conhecem...

Confrontado com esta mobilização de greve, respondeu assim belmiro de azevedo:
"Não acredito nesse anúncio de greve para a véspera de natal e que os sindicatos sejam duplamente irresponsáveis : criar desconforto a milhões de portugueses por um pequeno ataque de baixa qualidade. Segundo -e seria muito mais grave- ousem formar algum movimento e não deixem trabalhar quem quer."
Face a isto, e mesmo não sendo crente nem entusiasta do natal, vou evitar comprar o que quer que seja nestas superfícies nos próximos tempos porque, a existir, o Natal tem de ser para todos!, e enaltecedor da dignidade humana, nomeadamente a dos trabalhadores.
Que se combata o novo esclavagismo do nosso tempo!
Na sequência deste assunto, recomendo as seguintes leituras:
1) "Contra os negreiros" em http://combate.blogspot.com/ (16 de Dezembro, em "Vale a pena lutar" )
2) "Os novos negreiros" em http://samuel-cantigueiro.blogspot.com/ (mesma data às 00:01)

17/12/09

Mulheres da Liberdade

Não resisto a postar mais poemas da Maria Teresa Horta.
Estes, poemas de insurreição feminina no tempo da "velha senhora" (mas também tempo dos senhores...) em que muitos, homens e mulheres, ousaram, corajosamente, protestar contra a exploração e opressão fascistas.
O resultado exprime-se até hoje, em LIBERDADE e em "tomada de (novas) consciências". Sobretudo para as mulheres.
Tomada de consciência
I
Fizeste barreira
desalienada
à opressão que tinhas em casa
Da boca tiraste
a mudez _
mordaça
E em casa
gritaste
Gritaste na fábrica
a voz junta às outras
na mesma razão
_ E agora patrão?
II
Fizeste barreira
desalienada
à exploração que tinhas na fábrica
Dos pulsos tiraste
grilhetas
pesadas
Gritaste na fábrica
e gritaste em casa
a voz _ só
crescendo
vencendo o gemido
_ E agora marido?
Maria Teresa Horta in Mulheres de Abril

16/12/09

Mulheres de Abril

Mulheres de Abril
somos
mãos unidas
certeza já acesa
em todas
nós.
Juntas formamos
fileiras
decididas
ninguém calará
a nossa
voz.
Mulheres de Abril
somos
mãos unidas
na construção
operária
do país.
Nos ventres férteis
a vontade
erguida
de um Portugal
que o povo
quis.

in Mulheres de Abril


* Maria Teresa Horta

Poetisa e jornalista.
Feminista assumida , dedicou parte da sua vida a lutar pelas mulheres. Com Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno formou o grupo das "três marias", que integrou o Movimento Feminista de Portugal. São autoras do livro "Novas cartas portuguesas", que lhes valeu um processo judicial.
As gerações de mulheres portuguesas subsequentes a elas estar-lhes-ão eterna e profundamente gratas.
Que este poema se revista como um tributo a estas três grandes mulheres, e a tantas outras que sofreram torturas às mãos duma sociedade ( e ideologia) patriarcal antes de Abril.

É responsável, mais recentemente, pela antologia "A Mãe na literatura portuguesa", com poemas e prosa de vários autores em torno do tema "Mãe"

11/12/09

Primeira ode ao amor

(...)
Que desejo é este,
insensato,
que nada vence, nada apazigua,
nenhuma chama por inteiro queima,
nem sequer satisfazê-lo?

Porque não posso eu,
Porque não podemos nós, amor,
amar-nos mais,
até um aniquilamento
idêntico ao do vinho,
idêntico ao da ira,
idêntico ao da morte?
(...)

Dá-me os teus lábios.
Quero
contigo num mesmo sono mergulhado,
em mim perder-te,
perder-me em ti,
inconscientes eu e tu, mas um do outro.


*Armindo Rodrigues in Canto Fausto

Além de poeta e médico, Armindo Rodrigues foi também tradutor (traduziu, por exemplo, André Malraux, autor de A esperança, um dos "meus livros "). Foi co-fundador do PEN club português, e ,com outros autores, foi quem ajudou a pagar a primeira edição da primeira obra de José Cardoso Pires : Os caminheiros e outros contos.

09/12/09

Ser-se livre


O homem livre nunca é um
homem só

solidário
se é um homem livre


* Armindo Rodrigues
Um dos grandes neo-realistas portugueses.

07/12/09

Ary dos Santos ; Joan Didion

Destas mini-férias ressalvo dois marcos culturais: A peça de teatro no D. Maria II, " O ano do pensamento mágico" de Joan Didion, com a interpretação da grande mestra que é a Eunice Munõz, e o concerto (grandioso) de homenagem ao José Carlos Ary dos Santos, pela voz esplêndida e repleta de alma do Carlos do Carmo.

Do primeiro, ficou-me a impressão de uma história comovente e perturbadora narrada na primeira pessoa, e que não é mais do que uma reflexão aprofundada de pensamentos que nos assolam com frequência, mas fugazmente (porque a nossa ânsia de eternidade a mais não o permite), sobre a finitude da nossa existência e, mais ainda, a daqueles que amamos. Esta é a história de uma mulher (mas que poderia ser qualquer um/a de nós) que se confronta com a inimaginável e abrupta partida dos dois seres que aconchegaram a sua vida ao longo de décadas, o seu companheiro e a sua filha. É o relato da fatalidade que inevitavelmente nos sucederá a todos (até porque é assente em circunstâncias reais)... capaz de agitar os nossos medos e de emergir inquietações a que nos esquivamos em permanência. Mas é também uma história de reconciliação e de reencontro com a vida que sobeja, pela memória dos que partiram, sim, mas sobretudo pelo encargo que nos cabe em mover os sentidos da nossa existência. É, talvez, um perdão à própria morte...
A Eunice Muñoz encarrega-se desta narrativa e, goste-se ou não, ela reafirma-se com uma grande senhora do nosso palco.

O concerto do Ary.... aqui faltam-me palavras que sintetizem esse concerto indelével na minha vida. Uma casa cheia, não só de gente, mas de emoções várias onde a saudade, pareceu-me, atropelava todas as outras. Só conheço o Ary pelos poemas e pela voz de raras pessoas com quem me cruzei e que também o conheceram, muitos só de relance. Mas sempre me impressionou a força que a palavra assume nos seus poemas. Uma força bruta, que arrebata e emudece quem a lê, mas sobretudo quem a sente. A palavra, pela voz do Ary, pela mão do Ary, assume tantos contornos que é impossível caracterizá-la. Ela é emoção, ternura, paixão, humanidade, revolta, ideologia, coerência, frontalidade, ironia, humor... Lê-lo e ouvi-lo é ser-se tomado por esta amalgama de significados, que afinal só se poderá resumir desta forma: ARY!

O vídeo que antecedeu o concerto foi comovente. As palmas insurgiram-se em tantos remates dos seus versos, pois em cada um deles emergia uma mensagem sempre presente, sempre actual, capaz de revolver os nossos sentimentos.
Que Homem este! Que dignidade, que verticalidade! Um homem que na verdade nunca partiu, que é impossível deixar partir...

"Revejo tudo e redigo
meu Camarada e Amigo
Meu irmão suando pão
sem casa mas com razão.
Revejo tudo e redigo
meu camarada e amigo.

As canções que trago prenhas
de ternura pelos outros
saem das minhas entranhas
como um rebanho de potros."
(...)

01/12/09

Até breve!


Mini-férias:
Incluem amigos, teatro, exposição de Alberto Korda e um grande, grande concerto no Coliseu!
Até logo.

29/11/09

Contra o racismo II





LITLE ROCK
*

Um blues chora com lágrimas de música
na manhã fria.
O sul branco agita
o seu chicote e fere. Entre espingardas
pedagógicas as crianças negras vão
à sua escola de medo.
Quando chegarem às aulas
Jim Crow será o professor,
filhos de Lynch serão os condiscípulos
e haverá em cada carteira
de cada criança negra
tinta de sangue, lápis de fogo.

Assim é o sul. O seu chicote não pára.

Naquele mundo faubus,
sob aquele duro céu faubus de gangrena,
as crianças negras podem
não ir com as brancas à escola.
ou ficar suavemente em casa.
ou ( nunca se sabe)
deixar-se ferir até à morte.
ou não se aventurar pelas ruas.

Ou morrer entre balas e cuspo.
Ou não assobiar à passagem duma rapariga branca.
(...)

Nicolás Guillén

Até 1965 ainda vingavam as leis racistas de Jim Crow nos EUA, que subtraíam direitos a todos os que não fossem brancos. Foi a era da "supremacia branca" , um marco de vergonha para a Humanidade.

* Um século antes a corajosa Harriet Beecher escrevia a obra que Tolstoi considerou "uma das grandes produções da mente humana" : "A cabana do Pai Tomás".

Obra essa que, cada vez mais pertinentemente, deveria incorporar o canône académico de todas as escolas do mundo.

Contra o racismo I

LÁGRIMA DE PRETA

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
António Gedeão
Qualquer preconceito é desprezível e não merecedor da condição humana.
De igual modo, os mecanismos sociais que discriminam comportamentos diferentes são inviáveis numa sociedade que se quer justa e igual, e como tal não há espaço para os ditos " grupos dominantes".
Que movimentos como estes - apartheid, nazismo ,ku klux klan e outros similares - não voltem a vingar na História!

25/11/09

Cultivo una rosa branca


Cultivo una rosa blanca
En Junio como en Enero,
Para el amigo sincero,
Que me da su mano franca.

Y para el cruel que me arranca
El corazón con que vivo,
Cardo ni ortiga cultivo
cultivo una rosa blanca.

José Martí

* Poeta, pensador e jornalista cubano, também conhecido por "El apóstol", ou o grande mártir da independência de Cuba relativamente a Espanha.
É autor de frases como esta:
"Uma pitada de poesia é suficiente para perfumar um século inteiro".
E a sua poesia confirma-o.

21/11/09

Poema do Gato

Quem há-de abrir a porta ao gato
quando eu morrer?
Sempre que pode
foge prá rua,
cheira o passeio
e volta pra trás,
mas ao defrontar-se com a porta fechada
(pobre do gato!)
mia com raiva
desesperada.
Deixo-o sofrer
que o sofrimento tem sua paga,
e ele bem sabe.
Quando abro a porta corre pra mim
como acorre a mulher aos braços do amante.
Pego-lhe ao colo e acaricio-o
num gesto lento,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele olha-me e sorri, com os bigodes eróticos,
olhos semi-cerrados, em êxtase,
ronronando.
Repito a festa,
vagarosamente.
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele aperta as maxilas,
cerra os olhos,
abre as narinas.
e rosna.
Rosna, deliquescente,
abraça-me
e adormece.

Eu não tenho gato, mas se o tivesse
quem lhe abriria a porta quando eu morresse?

António Gedeão *

É um dos poetas que mais gosto, talvez porque teatralizei muito cedo alguns dos seus poemas, e tornaram-se, para mim , inesquecíveis : " Calçada de carriche", "Lágrima de preta", "Pedra filosofal", entre outros, e, claro, este "Poema do gato".
Porque ao contrário do poeta, eu tenho gato. :)

18/11/09

o AMIGO Lança

O AMIGO de um amigo partiu... mal o conheci pessoalmente, mas durante quase três anos convivi com a sua presença, exprimida pelas repetidas remetências ao seu nome. O meu amigo exaltava diariamente o "Lancinha", como lhe chamava, ou o "senhor arquitecto", sem que o "Lancinha" tivesse arquitectado alguma coisa, a não ser a grande Amizade que os unia. Todos os dias regavam a "frondosa árvore" da amizade, repetindo rituais e rotinas que passavam por aparentes insignificâncias: mensagens escritas ao acordar, jocosas e provocatórias, a comentar as derrotas do Benfica (para gáudio de um) ou as vitórias do Nacional (para folgança do mesmo); a disparatar sobre a política e despropositar no governo e nos ministros... Esta era uma amizade que se alimentava diariamente à distância que permeia Beja e Viseu. Por várias vezes assisti a conversas telefónicas entre os dois e aqueles minutos eram uma festa, as gargalhadas manavam estridentes e a ironia cómica que as distinguia era contagiante. Era afinal a expressão de uma amizade que nascera há tantos anos no Alentejo e que não se perdera na sucessão de dias que nos remetem para tão longe dos afectos...
Só vi o "Lancinha" uma vez, em Setúbal, mas era como se já o conhecesse. Foi fugaz o nosso encontro, ficou-me na memória um homem simples, sempre risonho, com aquela bonomia alentejana gravada no rosto. Hoje partiu, deixando o meu amigo inconsolável. Há pouco recordava-o comigo, ao telefone, e demos por nós a rir do humor do "Lancinha", das mensagens do "camarada Lança", como era também tratado pelo meu amigo, das peripécias dos seus amores, das histórias que viveram juntos... E rimo-nos. Como a camuflar as lágrimas que o meu amigo não verteu, mas que sei que as solta em surdina...

Horário do Fim

morre-se nada
quando chega a vez

é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos

morre-se tudo
quando não é o justo momento

e não é nunca
esse momento

Mia Couto


A todos e a cada um dos meus amigos

Por um por todos por nenhum
faço o meu canto a minha mágoa
num desencanto aberto pelo gume
deste pranto tão limpo como a água.
(...)

Joaquim Pessoa

Até sempre "Lancinha"!

A Utopia serve para caminhar!



" A Utopia está lá no horizonte.
Aproximo-me dois passos, ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos.
Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei.
Para que serve a Utopia?
Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.
"

Eduardo Galeano *

* Escritor uruguaio e jornalista de propensão política, viveu no exílio na sequência do golpe militar no Uruguai. Pensador e homem da cultura, teve como marco na sua obra o célebre livro " As veias abertas da América Latina" (que Chávez ofertou a Obama, publicamente, numa cimeira).

15/11/09

É definitivamente proibido!

Pablo Neruda
Queda prohibido llorar sin aprender,
Levantarte un día sin saber que hacer,
tener miedo a tus recuerdos...

Queda prohibido no sonreir a los problemas,
no luchar por lo qui quieres,
Abandonarlo todo por miedo,
No conventir en realidade tus sueños,...

Queda prohibido no intentar comprender
a las personas,
pensar que sus vidas valen menos que la tuya,
no saber que cada uno tiene su camino y su dicha...


Queda prohibido no crear tu historia,
no tener un momento para la gente que te necesita,
no comprender que lo que la vida te da,
tambien te lo quita ...

Queda prohibido, no buscar tu felicidad
no vivir tu vida con una actitud positiva
no pensar en que podemos ser mejores,
no sentir qui sin ti, este mundo no sería igual...


Um grande poema que me foi enviado por um amigo, via e-mail, um apelo veemente à força intrínseca que nos compõem, para que se materialize na LUTA pela qual cada um de nós é responsável...

14/11/09

Ode à Paz


Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!
Natália Correia
Hoje, a esta hora, em Lisboa, decorre uma marcha mundial pela paz, uma festa multicultural com marcha desde o Marqûes até ao Martim Moniz. Estas iniciativas nunca são em demasia num mundo que se almeja melhor, muito melhor...
E ao invés do que se pense ou se diga, fazem diferença, sim!, mesmo que essa diferença possa parecer pouco visível (para alguns, claro).

12/11/09

O Mar

I

El mar. La mar. El mar. ¡Sólo la mar!
¿Por qué me trajiste, padre, a la ciudad?
¿Por qué me desenterraste del mar?
En sueños, la marejada me tira del corazón. Se lo quisiera llevar.
Padre, ¿por qué me trajiste acá?

II

Gimiendo por ver el mar,
un marinerito en tierra
iza al aire este lamento:
¡Ay mi blusa marinera!
Siempre me la inflaba el viento
al divisar la escollera.

III

Pirata de mar y cielo,
si no fui ya, lo seré.
Si no robé la aurora de los mares,
si no la robé,
ya la robaré.
Pirata de cielo y mar,
sobre un cazatorpederos,
con seis fuertes marineros,
alternos, de tres en tres.
Si no robé la aurora de los cielos,
si no la robé,
ya la robaré.
* Rafael Alberti, poeta espanhol, o último da Geração de 27, à qual também pertenceu Garcia Lorca, foi um amante das palavras e do mar.

Tavez o mar seja um lamento,
um chão de lágrimas
derramadas por poetas...

10/11/09

A culpa não é deles


... é de quem inflige maus-tratos a todo e qualquer ser, incapaz de se defender.

07/11/09

Discurso tardio à memória de José Dias Coelho


Éramos jovens, falávamos do âmbar
ou dos minúsculos veios de sol espesso
onde começa o verão; e sabíamos
como a música sobe às torres do trigo.

Sem vocação para a morte, víamos passar os barcos,
desatando um a um os nós do silêncio.
Pegavas num fruto: eis o espaço ardente
do ventre, espaço denso, redondo, maduro,

dizias: espaço diurno onde o rumor
do sangue é um rumor de ave
-repara como voa, e poisa nos ombros
da Catarina que não cessam de matar.

Sem vocação para a morte, dizíamos. Também
ela, também ela não a tinha. Na planície
branca era uma fonte: em si trazia
um coração inclinado para a semente do fogo.

Morre-se de ter uns olhos de cristal,
morre-se de ter um corpo, quando subitamente
uma bala descobre a juventude
da nossa carne acesa até aos lábios.

Catarina, ou José - o que é um nome?
Que nome nos impede de morrer,
quando se beija a terra devagar
ou uma criança trazida pela brisa?


Eugénio de Andrade
Deparei-me com este poema no blogue "Cravo de abril", um dos que sigo por razões várias, que passam pela profundidade da poesia escolhida, pela identidade ideológica e não raras vezes pela contra-informação capaz de elucidar e contrapor a corrente informativa vigente, e, desde logo, achei que se enquadraria neste "Catarina de todos nós".
Ainda oiço dizer que a Catarina Eufémia é um mito enaltecido oportunisticamente, o que, no mínimo, me indigna. Uma mulher, jovem, analfabeta, assalariada rural, com três filhos, foi barbaramente assasinada com um dos filhos ao colo (!!) quando reivindicava , numa greve, a justiça do seu salário, ou seja, o "trabalho e pão" para os seus filhos, e ainda há quem ache que esta mulher foi mitificada?! Mas não é esta ceifeira, em si mesma, um ícone para todos os que se indignam com a injustiça salarial, seja ela de género ou de outra natureza qualquer?
José Dias Coelho, artista (a gravura, "Catarina Eufémia", escolhida para a apresentação do poema é de sua autoria) e intelectual, também ele um marco de lutas e resistência antifascista, foi, por isso, assassinado. A ele, Zeca Afonso dedicou a música : "A morte saíu à rua".
Bem-aventurados sejam as Catarinas e Josés deste mundo!

05/11/09

About U.S.A. - Grande América



Parte I do poema de José Salsorte, porque a face de um país tem sempre um reverso, e eu gosto de reservar o melhor para o "fim":


Grande América
United States of
pátria dos Orson Welles predestinados
para a comunicação imagética
berço embriagante dos blues em New Orleans
terra de Lincoln, Roosevelt, Kubrick
reino onde germinaram seduções de Whitman, Bogart, Twain
e glorificada por Sinatra, Allen, Brando, London
três gerações indómitas
- os exploradores polares
- os pioneiros da aeronáutica
- os aventureiros cósmicos

Grande América
United States of
enaltecida pela música, desde o jazz até às baladas dos protestos
palco daquele precipitado primeiro de Maio em Chicago
patrona dos Direitos do Homem
potentado da Ciência ao serviço do Progresso
conforme o demonstraram Edison ou Franklin ou Bell e Morse
semente do raciocínio eclético de Ângela Davis a Paul Robson
razão contida em George Jackson e também Malcolm X

Grande América
United States of
que te soubeste expôr perante o mundo
na casa Kaufmann das Cascatas e no gigantismo de Lloyd Wright
sobre as melodias impressionadas por Copland, Simon, Gershwin e Bernstein
através literaturas contestatárias dos Caldwell, Miller, Poe
com ternuras de Fitzgerald, Hemingway, Steinbeck, Pound
e graças aos heróicos repórteres de tantos Watergates

Grande América
United States of
fonte dos hereditários princípios semelhantes
elegia ancestral da libertação colonial
sumo do Amor brusco e outonal
como Reed te estremeceu universalmente

Grande América

04/11/09

About U.S.A. - Pobre América


Um poema de José Salsorte, II parte:


Pobre américa
united states off
pátria dos imperdoáveis "trusts" multinacionais
ventre mórbido da escravidão legalizada
berço da ku klux klan no tennessee congeminada
terra prometida à "cosa nostra", ao monroeismo, às reservas índias
reino que embalou os ultra-nacionalismos
e manchada por sinatra, macarthur, enola gay, my lai

três gerações assassinas
- a chacina dos autóctones
- a aposta coreana
- a lição no vietnam

pobre américa
united states off
meretriz do capitalismo desde o haiti até à tailândia
frustração demonstrada sob sacco e vanzetti
coito da bomba nuclear
mãe desalmada dessas enormidades cometidas
em hiroshima, nagasaki e little bighorn
infâmia personalizada por mccarthy, goldwater, marshall
hipocrisia de truman e também nixon

pobre américa
united states off
que escondes ao respeito pelo mundo
os ghettos de harlem e os livros de mccoy
as nacionalidades de stern, kazan ou nabukov
as arqui-conjuras dos senadores congressistas
os golpes de estado pinochetescos
e as dextras intenções dos jornais sem página esquerda

pobre américa
united states off
fosso da acumulada segregação racial
sintético slogan do self-made-man
esperma ejaculado na guerra e na miséria
com que persistes infestar o planeta

pobre américa

Sto. António Caparica, Outubro 1972
Um poema fortíssimo e "cortante". Na verdade é um dos lados de um grande poema que resume a América, sob um olhar justíssimo e certeiro.

03/11/09

Sol do Mendigo


Olhai o vagabundo que nada tem
e leva o sol na algibeira!
Quando a noite vem
pendura o sol na beira dum valado
e dorme toda a noite à soalheira...

Pela manhã acorda tonto de luz
vai ao povoado e grita:
- Quem me roubou o sol que vai tão alto?
E uns senhores muito sérios rosnam:
- Que grande bebedeira!

E só à noite se cala o pobre.
Atira-se para o chão
dorme, dorme....

Manuel da Fonseca

Há muito que não lia nada de Manuel da Fonseca, desde a "Seara de vento", a "Aldeia nova" ou a "Rosa dos ventos". Saudades da família Palma e do conflito com as forças oligárquicas da sua aldeia, e do Mestre Finezas e da Maria Altinha... textos lindíssimos repletos de investidas sociais e políticas e , claro, de um humanismo sensibilizador.

Hoje um amigo enviou-me este poema por e-mail e não resisti a postá-lo aqui. Era um dos poemas favoritos do seu pai, José Salsorte, também ele, um poeta de muitas lutas.

02/11/09

O mundo de Obama


Hoje calhou-me uma daquelas conversas de café que trouxeram a política internacional à ribalta. Não sou indiferente ao assunto, pelo contrário, mas também reconheço que na maioria das vezes se discute sem dispor de toda a informação necessária para se retirar ilações e formular opiniões conformemente. Umas vezes, porque não se tem tempo para a procurar, outras porque a informação que nos chega vem de tal forma censurada e manipulada, que, qualquer juízo que se faça, incorre na presunção de erro.
Na maior parte das vezes, tende-se a opinar pela mera leitura dos títulos garrafais ou panfletários da imprensa (sobretudo a de cordel ) , e neste raciocínio afirmava-se hoje, por exemplo, que Cuba tinha acusado peremptoriamente os EUA de introduzir a gripe A na ilha....
Bem, o que me foi possível ler conduz-me a uma leitura e interpretação bem diferentes : " (...) Se produjo así el extraño caso de que Estados Unidos, por un lado, autorizó los viajes del mayor número de personas portadores del virus y, por otro, prohíbe la adquisición de equipos y medicamentos para combatir la epidemia. No pienso, desde luego, que esa haya sido la intención del gobierno de Estados Unidos, pero es la realidad que resulta del absurdo y vergonzoso bloqueo impuesto a nuestro pueblo.”

Na mesma conversa houve quem defendesse convictamente que o mundo mudava gradualmente (ou que mudaria) com a liderança de Obama. Mais uma vez ressalvo o facto de poder não estar devidamente documentada, ou de andar a ler jornais bem diferentes dos demais, mas contrapus uma sucessão de afirmações do "género", na medida em que:
- A crise não se resolveu e não me parece que se vá resolver com a táctica económica utilizada, que, ao que sei, foi a mera injecção de muito (muitooo!!) dinheiro dos contribuintes aos bancos e empresas falidos. Algum economista que me socorra se estiver errada, até porque este não é o meu domínio, mas o combate à crise não se faria antes com o estabelecimento de regras (normas!) no sistema financeiro?!

- Obama mudou de discurso, é verdade, e com reconhecidos dotes de retórica ( e só! ) lá vai convencendo o mundo que tem vontade política de resolver o conflito Israelo-Palestiniano; que tem boas intenções para com o mundo islâmico, que retiraria gradualmente as tropas do Iraque, do Afeganistão...; que pretende encerrar Guantánamo (foi promessa eleitoral, se me lembro, cuja solução seria cumprida em 100 dias!)... Ah, e ainda as Honduras, criticou o golpe militar, é um facto , ao que parece, mas interveio convictamente no conflito?Já lhe pôs termo? Ora, se o golpe fosse na Colômbia queria ver...

E a realidade, no meio de tanto "optimismo", é que este presidente continua a não dar sinais de mudança. O mundo de Obama não é, afinal, diferente do de Bush, por mais "angélico" que queira parecer.

29/10/09

A tua lembrança

Sinto que a tua lembrança se dissipa
da minha mente, como uma velha estampa;
a tua figura já não tem cabeça
e um braço está desfeito, como nessas
decalcomanias desoladas
que os rapazes fazem na escola
e são depois, no livro esquecido,
uma mancha dispersa.

Quando estreito o teu corpo,
tenho a leve sensação de que está feito de estopa.
Falas-me, e a tua voz vem de tão longe
que mal consigo ouvir-te. Além disso, já não acredito em ti.
(...)

Nicolás Guillen* in Antologia Poética


* Poeta cubano nascido em 1902, representa, como já aqui se referiu, a poesia negra e crioula do seu país, poesia essa que se reveste de um grande humanismo e consciência social, ou não fosse ele um poeta do povo e para o povo! É também autor de inúmeros poemas, denominados de amor.

25/10/09

Dez réis de esperança



Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.

Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos à boca
e viesse o que viesse.

Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente.

Aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aguarela,
que sonha no frio
encosto da vidraça da janela

Não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
ouviram, viram, ouviram,viram,
e não perceberam.

Essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule,
flutuando no pranto do desencanto.

Se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.

António Gedeão


Se não fosse a esperança, o ardor das convicções e a veemência dos valores, restaria muito pouco a muitos de nós...

24/10/09

Com uma criança nos braços


Vem, através de tudo vem,
com lentos, lentos mas implacáveis passos
aquela mulher que tem
uma criança nos braços.
Vem, através das páginas da história
que já não conseguimos apagar
- quem pudesse fechar a memória
e deitar a chave ao mar.
Vem, através de tudo avança.
E há pessoas que ficam ofendidas
porque aquela mulher a aquela criança
deveriam ser proibidas.
Deveriam ser mas para sê-lo
os pássaros não teriam asas
e seria preciso toneladas de gelo
para apagar biliões de brasas.
E ela vem. Como se tudo desenhasse
em lentos, lentos mas implacáveis passos
- como se de Hiroxima voltasse
com uma criança nos braços.
Sidónio Muralha
Este poema, de um grande "poeta da condição humana", é para as meninas- mãe com quem trabalho no (nosso!) Grupo de Teatro do Centro da Mãe.

21/10/09

Saramago : Caim


Passados quase 20 anos eis que Saramago se vê novamente acossado por polémica similar aquando da edição do "Evangelho segundo jesus cristo", desta vez desencadeada por um tal de Mário David. Este eurodeputado arroga-se do direito de "sugerir" a Saramago que mude de nacionalidade, tudo porque "discorda" do conteúdo anti-bíblico do novo livro do autor, "Caim", o primeiro homicida da história da humanidade...

Não li (ainda) o livro, mas pelas notícias é manifesto que se trata de uma ficção cujos personagens são deus, caim e a humanidade e pelo desfolhar do qual se aborda, em modo crítico, o dogma bíblico. Sem entrar em preceitos religiosos, até porque esses são respeitáveis seja qual for a doutrina religiosa implicada na escolha de cada um, a minha pergunta é apenas uma:

35 anos após o 25 de Abril ainda se pensa exilar alguém por praticar o direito incontestável de LIBERDADE DE EXPRESSÃO?!

O camareiro

Este é um trabalho ímpar no panorama artístico actual.Trata-se de uma peça magistralmente encenada (encenação de João Mota) e sustentada por um elenco irrepreensível.
O texto , de Ronald Harwood, que além de dramaturgo é também guionista (lembram-se do filme O Pianista?) é de uma profundidade tocante e simultâneamente crítico e filosófico. Em traços gerais retrata o universo teatral "do avesso", ou seja transporta-nos aos bastidores de um teatro onde as emoções se atropelam, os medos se exarcebam, o improviso é previsível e, num reboliço de actores, efeitos de contra-regra e "bombardeamentos" (a tramóia ocorre em plena guerra e o espectáculo, dentro do espectáculo, é assolado por vezes com explosões bélicas) o enredo assume-se como um ode afectivo ao Teatro. Pelo meio, no decorrer da trama, expõem-se outros afectos, os que despontam nos bastidores de uma companhia de teatro, em que o actor principal era também um empresário e seu director. Destes afectos, há um que sobressai pela dedicação incondicional, inquestionável e eterna ao seu "sir". Trata-se do camareiro, soberbamente interpretado pelo Virgílio Castelo. A construção do personagem (o Norman) é arrepiante, com recurso à técnica, sim, mas sobressai porque o Virgílio se "entrega" de tal forma ao camareiro, que ante nós, espectadores, perpassa um desfile de emoções que não raras vezes nos arrepia no despontar de lágrimas e gargalhadas...
E depois há o Ruy de Carvalho ("Sir"), do qual será difícil rebuscar adjectivos que já não o tenham dignificado e tributado. Não sei qualificá-lo, é um actor majestoso! Vê-lo é um privilégio absoluto, é uma memória que se grava para sempre dentro de nós. É uma aprendizagem, uma estupefacção pelo talento, pela humanidade que ele emprega nos seus personagens...
Por ele, confirma-se, que "Ninguém ama tão rebarbativamente e desalmadamente como o actor"!

(Esta peça está em cena no teatro nacional D. Maria II até ao dia 25 de Outubro.)

20/10/09

Palavras...


As palavras são recursos inúteis quando se quer converter a mais sublime das emoções em poemas.
Por vezes, muitas vezes, a poesia não é mais que o desfilar de um gesto ou de uma lágrima que emudecem na grandeza do seu ardor. E que nos tolhe no desespero da razão.
Quisesse pincelar com versos a elegia dos afectos...Quisesse que um poema se enlevasse e cantasse em laudes a afeição. E que as estrofes se esgrimissem e gritassem odes com paixão...
Mas tudo emudece em redor, os gestos silenciam as palavras, as palavras mimetizam os afectos.
E estes...
evolam-se.
No discorrer de um tempo.

18/10/09

Funchal


amo o outono nesta cidade
as pequenas casas de raras cores
os campos de vinhas e cana-de-açúcar os pomares entre maio e
agosto.

Dizes:

Eis a tua cidade
a de zarco e colombo
as ruas estreitas tão inclinadas como o sol dos invernos profundos
os carros de cestos os caminhantes da encumeada.

eis-te no centro de tudo e os navios parados.

amo o outono nesta cidade com todas as viagens sem chegada.
na véspera já amara as verdes montanhas de leste
as chuvas abundantes
machico entre os seios de ana d`arfert.

depois voltei para sul e amei-te enquanto cantavas.
século antes navegadores de portugal deram-te um nome e
era funchal.
depois queimaram as árvores e o mais alto incêndio era uma ilha.
escravos errantes pararam o sol e à volta serenamente e sem paixão
espalharam o verde o azul.

nunca cantaram a alegria.

hoje
solitários e ébrios trabalham a pedra a beleza e o turismo

tu
envolta nas lendas e no sonho surgiste devagar e devagar
deste-me os mais belos frutos e os mais estranhos
as pitangas os araçás os maracujás e as romãs muito depois
da primavera.

eras mulher e quis guardar-te para sempre no coração de uma
cidade surpreendida.
foi então que vi a morte aproximar-se vinda do horizonte e
cobrir o pôr do sol das tuas tardes
vi morrer a água a luz a leve sombra de palidez da tua fronte
vi as aves marítimas seguirem para longe em voo raso
e pela última vez
definitivamente só

eu amei o outono nesta cidade.

José Agostinho Baptista in "Deste lado onde"


... é a cidade que se impõe em cada voo, que resgata todos os que partem, sejam os poetas que a entoam em versos, sejam os sonhadores que almejam dobrar o horizonte...
E os regressos, esses, são cercos ladeados de mar.

06/10/09

FÉRIAS !!!


Até breve!

Londres







Os pássaros de Londres
cantam todo o inverno
como se o frio fosse
o maior aconchego
nos parques arrancados
ao trânsito automóvel
nas ruas da neve negra
sob um céu sempre duro

os pássaros de Londres
falam de esplendor
com que se ergue o estio
e a lua se derrama
por praças tão sem cor
que parecem de pano
em jardins germinando
sob mantos de gelo
como se gelo fora o linho
mais bordado ou em casas
como aquela onde Rimbaud
comeu e dormiu e estendeu
a vida desesperada
estreita faixa amarela
espécie de paralela
entre o tudo e o nada

os pássaros de Londres
quando termina o dia e o sol
consegue um pouco
abraçar a cidade
à luz razante e forte
que dura dois minutos
nas árvores que surgem
subitamente imensas
no ouro verde e negro
que é sua densidade
ou nos muros sem fim
dos bairros deserdados
onde não sabes não
se vida rogo amor
algum dia erguerão
do pavimento cínzeo
algum claro limite

os pássaros de Londres
cumprem o seu dever
de cidadãos britânicos
que nunca nunca viram
os céus mediterrânicos.

Mário Cesariny de Vasconcelos in "Poemas de Londres"

Lisboa


Em cada esquina te vais
Em cada esquina te vejo
Esta é a cidade que tem
Teu nome escrito no cais
A cidade onde desenho
Teu rosto com sol e Tejo.
Caravelas te levaram
Caravelas te perderam
Esta é a cidade onde chegas
Nas manhãs de tua ausência
Tão perto de mim tão longe
Tão fora de seres presente.
Esta e a cidade onde estás
Como quem não volta mais
Tão dentro de mim tão que
Nunca ninguém por ninguém
Em cada dia regressas
Em cada dia te vais.
Em cada rua me foges
Em cada rua te vejo
Tão doente da viagem
Teu rosto de sol e Tejo
Esta é a cidade onde moras
Como quem está de passagem.
Às vezes pergunto se
Às vezes pergunto quem
Esta é a cidade onde estás
Com quem nunca mais vem
Tão longe de mim tão perto
Ninguém assim por ninguém.
Manuel Alegre
Foto de Armando Sena:

04/10/09

Dia mundial do animal

Hoje, em vários pontos do país, comemora-se o dia do animal ( e do Médico Veterinário) organizando campanhas de sensibilização e adopção de animais abandonados. É de enternecer a expressão de muitos destes animais. Têm um tal olhar que perturba de tão comovente, a que não é alheia a história de abandono e o próprio stress que estes eventos implicam, por mais bem intencionados que sejam.
Pela experiência que tive em algumas destas acções, a taxa de sucesso de adopção é enorme, sobretudo graças a crianças que retêm teimosamente os pais no recinto, encantadas com aquela espontaneidade e ingenuidade de quatro patas...tão similar à delas, afinal....
Entre súplicas persistentes, apelos com lágrimas e exigências firmes, os pais lá se rendem ao convívio dos nossos amigos. E felizmente , a maioria destas histórias são felizes. Os animais encontram ou reencontram um lar que os acolhe "para sempre"...

Excepções a este final, também existem muitas, com a devolução às instituições de acolhimento e à reincidência do abandono. É incompreensível a insensibilidade, responsável por histórias miseráveis de maus-tratos aos animais, que além do abandono, incluem envenenamentos deliberados e outras torturas psicopáticas, que põem a cobro o pior do ser humano... Ainda hoje há quem afirme que os animais não sofrem como nós, que não padecem de stress como nós. Pessoas incapazes de reconhecer nestes seres um amigo. E que amigo!, soubessem eles...
Viver com um animal, trabalhar com eles e para eles, é para mim um privilégio, um orgulho imenso, o que por si só torna o meu trabalho, provavelmente, menos stressante que os demais.

E remato a parafrasear Leonardo da Vinci (1452-1519):
"Chegará o dia em que os homens conhecerão o íntimo dos animais e, neste dia, um crime contra um animal será considerado um crime contra a humanidade".

... Até porque as sociedades e os valores a elas inerentes também se traduzem no reconhecimento de que "os animais são nossos amigos".

03/10/09

Obrigada


Foi um bom espectáculo. A cada uma de vocês, as que participaram, as que não participaram; as que vieram assistir e as que não puderam vir, o meu muito, muito obrigada!

Bem-hajam!

01/10/09

O Teatro


Falar do Teatro é mergulhar num amor teimoso que não se arreda de mim há 24 anos. Tinha entrado na adolescência quando fui arrebata pela intensidade,tão racional quanto irracional, do Teatro. Foi uma entrega inquestionável, que no entanto me ensinou a questionar, e a pensar. Um tempo que me roubou tempo de estudo, mas que o devolveu em ensinamentos que ainda hoje se sustentam. Foram sacrifícios enormes, que se compensaram em afectos para a vida. Foi, ainda é, um dos grandes incitadores do meu destino... O Teatro enformou-me. E transformou-me. E estes, creiam, são efeitos milagrosos desta arte.

Há quase um ano, e após anos consecutivos a vivenciar o Teatro "só" como actriz, propuseram-me que desse aulas de Teatro numa instituição que apoia jovens mães ( e menos jovens também) carenciadas. Não hesitei sequer em aceder e muitas terão sido as razões que contribuíram para isso...

A primeira aula foi difícil. Uma das responsáveis transmitiu-me a mensagem de que se eu não quisesse continuar , compreenderia, até porque eu ingressara na instituição como voluntária.
Propus um exercício de integração e apresentação. Protestaram. Perguntei-lhes o que esperavam das aulas, responderam que estavam ali contrariadas. Que ideia tinham do teatro? Não gostavam.
E não mentiam. Entre as carências imensas que lhes ditaram muitas das agruras que a sua pouca idade já experenciou, denunciaram sempre a verdade do seu carácter. Não se imbuíram de mentiras para vingarem na vida, nem das verdades dos outros para se afirmarem.
Saí da aula consciente do meu insucesso, mas decidi que não desistiria. Porque tinha gostado delas, daquelas meninas já mulheres e já mães. Crianças ainda, com estórias escritas a dor, muita dor... e revolta.

Fiquei. E entre a minha insistência e a resistência do grupo, a minha teimosia e os seus protestos (que poderá simbolizar o Teatro a quem mendiga a sobrevivência todos os dias?!), o milagre aconteceu. Foram pequenos milagres, que se assumem gigantes, quando penso no dia-a dia destas meninas, muitas privadas de afecto, outras sem família, sem ninguém que lhes fale de valores, que lhes ensine a sonhar e a vislumbrar o futuro, o seu e o dos filhos que já carregam...

No dia 27 de Março (dia do Teatro) conseguimos participar num festival de Teatro Amador com um pequeno texto,cuja comicidade lhes arrancou inúmeras gargalhadas (inclusive em pleno palco!). Elas que, suspeitei, nem sabiam sorrir... As mais resistentes agora pediam para participar nas actividades. De uma vi despontar um grande sorriso após imensas sessões de obstinação. Ou talvez de tristeza...Outra superou a imensa timidez e até nos contou a sua história de amor. Outras voluntariam-se, agora, para ler, quando antes se envergonhavam de ainda soletrarem as palavras. Interagem positivamente umas com as outras quando antes se atropelavam em incidentes e guerrilhas que, não raras vezes, tive de mediar .... E uma outra, já mais velha, decidiu voltar a estudar numa escola profissional. A iniciativa foi sua, a escolha também. Começou este mês a estudar. Teatro!, quer ser animadora Cultural.
Sem se aperceberem, sei que todas elas, de uma forma ou de outra, foram cativadas pelo irrequieto e sedento "bichinho do teatro". Sei que o Teatro, mais uma vez, se interpôs no trilho dos que, por acaso (ou talvez não) o interceptam, e cumpriu o seu fim sublime: resgatá-los, nem que seja por momentos, do sofrimento que os mina; encorajá-los a debater-se nas dificuldades; embebê-los de afectos e pensamentos... Mas sobretudo, enformando-os. E tranformando-os!
No próximo sábado apresentaremos o segundo espectáculo. Desta vez, a leitura de poemas infantis de Sidónio Muralha, que lerão e interpretarão em público, para os seus filhos e para os filhos de todas as mães.
E corra como correr, não importa, o milagre vai acontecer!

Poema do actor


O actor acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores(...)
Ninguém ama tão desalmadamente como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo ao pequeno talento humano(...)
O espantoso actor que tira e coloca e retira o adjectivo da coisa,
a subtileza da forma,e precipita a verdade(...)
Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus(...)
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor.Como a unidade do actor.
O actor é um advérbio que ramificou de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira, e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamentedo Nome.
Nome que se murmura em si, e agita, e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.Que sangra.Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo, enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.Como o corpo do actor.
Porque o talento é transformação.O actor transforma a própria acção da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.Faz crescer o acto.O actor actifica-se(...)
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.
Em estado de graça. Em compacto estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela. Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimentode onde brota a pantomina (...)
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.O actor em estado geral de graça.

Herberto Helder

Um grande poema! Dos que mais dignificam o Teatro e o actor.

28/09/09

O dia seguinte...


É dia de continuar a trabalhar!

"Isto vai, meus amigos, isto vai".O Ary bem sabia...


SONETO DO TRABALHO

Das prensas dos martelos das bigornas
das foices dos arados das charruas
das alfaias dos cascos das dornas
é que nasce a canção que anda nas ruas.

Um povo não é livre em águas mornas
não se abre a liberdade com gazuas
à força do teu braço é que transformas
as fábricas e as terras que são tuas

Abre os olhos e vê. Sê vigilante
a reacção não passará diante
do teu punho fechado contra o medo.

Levanta-te meu povo. Não é tarde.
Agora é que o mar canta é que o sol arde
pois quando o povo acorda é sempre cedo.


José Carlos Ary dos Santos

27/09/09

Bertold Brecht


Porque hoje é dia de escolhermos o futuro, individual e colectivo (colectivo sobretudo!) invoco Bertold Brecht, cujo discurso poético de intervenção social e política perdura até hoje. Mais um flagrante da consciencialização, intervenção e afirmação política pela arte, que impulsionou e fundamentou muitas das minhas opções ao longo da vida. E é de um brilhantismo incontestável!
Alguns extractos dos seus textos e poemas:

1) Nada é impossível de mudar

Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural
nada deve parecer impossível de mudar.

2)Não há pior analfabeto que o analfabeto político.
Ele não ouve, não fala,
nem participa dos acontecimentos políticos.
O analfabeto político é tão burro que se orgulha de o ser e,
de peito feito, diz que detesta a política.
Não sabe, o imbecil, que da sua ignorância política
é que nasce a prostituta, o menor abandonado,
e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, desonesto,
o corrupto e lacaio dos exploradores do povo.

3)Perguntas de um Operário Letrado

Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruída,
Quem outras tantas a reconstruiu?
Em que casas da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde foram os seus pedreiros?
A grande Roma está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu?
Sobre quem triunfaram os Césares?
(...)
Bertold Brecht

26/09/09

Arca de Noé - Fim.


Seguiu a gata enquanto pôde. Dissipara-se entre os montes, aterrada de tristeza. Corria aprisionada pelo medo. O medo da sentença que se inflige na verdade...


josé arfava de cansaço, mas insistia. ensinara-lhe, um dia, que o mar era um lago onde fluíam as lágrimas dos homens.... Subiria até ao lume do monte, onde serena, se escoava uma lagoa, em fios prateados fulminados pelo sol.


Avistou uma garça, que fugia apressada no fulgor do céu:
- Viste uma gata, pequena e fulgente, devastada por enganos no releixo da verdade?
- Vi-a relampejar de medo na berma de um lago... Eu levo-te lá, mas não demoro. Perco tempo... tenho a pressa de quem parte.
Deixou-se enlevar com a garça, revolvido em vertigens, arrebatado de vozes insaciáveis do céu, ávido de afectos no clarão do reencontro.

Descobriu-a, desolada, como um vulto fulgurante, debruçada na margem da lagoa, recortada na montanha. Atirava repetidamente as folhas das árvores para a água, e deixava-as ao acaso, para deleite do vento. As folhas deslizavam silenciosas, radiantes na viagem, inquietas navegantes no pequeno chão de água.
- São os navios que resplandecem ao dobrar do horizonte.... - disse a gata , entre lágrimas, que incendiaram o coração de josé. - E agora, dizes-me por fim o que é o mar, josé?
- O mar é um poema... - hesitou o cão, comovido.
- Não mintas, josé... o mar não cabe num poema!


O sol caía de cansaço. As árvores recolhiam-se na balbúrdia da noite. Incansável, o céu aguardava pela lua. O lago escurecia no recato das sombras. As estrelas insurgiam do silêncio dos pássaros.
E no fundo do mar, que carrego em segredo, vi dois seres aninhados pelo mesmo destino.
- Cheguei tarde? - perguntou o poeta, metade gato, metade cão.
- Não. Nunca é tarde para chegar!... a uma vida.

fim.

24/09/09

Arca de Noé - Parte II


Era uma gata pequena e soturna. Tinha nos olhos o baço de um verde que não pude entender. Sobrevivia de fábulas, cismou numa ilha de lendas do mar, solitária premente nos enganos da vida. Esquivou-se de afectos, e desfiou-se nos dias, em desalento, narrando estórias para viver.

Conheceu-a ao acaso numa ponte, filigrana de encontros e despedidas, quando ao longe lhe acenava um adeus daquele que vivia dentro de si. O cão tinha um Poeta. Um transeunte da memória que insistia em não partir. De vez em quando encontravam-se sobre os escombros de um passado que os uniu. Ficavam em silêncio, e afagavam-se em saudade, nas promessas de um futuro em que nenhum acreditava. Deixava-o partir, para o poder esperar....e sonhar.

A seu lado, a gata perguntava-lhe:
- Porque partiu o teu Poeta?
- Partiu, talvez, para poder chegar...
- Aonde? - Interrompia-o no pulsar da indignação
- Ao fim do seu destino...
- Quem é o destino? - Indagava-o perplexa.
- É um archeiro, que se inflecte nos mistérios da vida.

A gata não insistia. Tomara-se pelo ensejo de ver navios, e logo se desprendia de qualquer mistério, que a fizesse desviar do mar.
Era sempre a primeira a acordar, e naquele dia antecipou-se na alvorada. Corria desvairada pela enseada, espairecia nos segredos das árvores, espantava o silêncio dos pássaros, arreliava as mariposas, assustava ratinhos perdidos na encosta, ensarilhava-se com os coelhos que a desafiavam nas tocas... e ria-se como nunca, divertida, aloucada de visões de uma planície imensurável de água, tingida de sons e de brilhos, onde se embebiam os navios que sonhava.
José também ria, incapaz de a repreender e reprimir-lhe a traquinice.
A gata soltava miados de euforia, cantorias de aleluia nos voos da alvorada. E vivamente mordiscava josé para o acordar. E josé fingia-se preguiçoso, para perdurar aquele afago...

- josé , temos de partir para o mar! - gritava ela jovial. E foi quando josé sentiu a convulsão da verdade que adiava. O mar!...
- Perdi-me do mar há tanto tempo... já não sei o caminho para lá chegar... - confessou-lhe, por fim.

Ah, as verdades.... assassinas impiedosas que se debatem nos estreitos do norte, auspícios de morte, no coração de uma vida que se contorce de sonhos....


(Continua...)

22/09/09

Arca de Noé - Parte I


Um conto, um tributo a dois seres especiais, escrito há uns anos :))


Distraí-me um dia enquanto vigilava o horizonte, sempre velado em segredos que não se desvelavam, no corrupio estonteante dos grandes navios que o cortavam.

Nas encostas do meu refúgio, que se debruçavam no mar, vi dois seres que se aninharam em mistérios de vida e ao abandono do que ditaram os homens. Brilhavam na encosta íngreme de afectos, e reluziam na cumplicidade de quem derrubou uma fronteira. Ele era um cão, envelhecido pelo destino, seteiro trocista, que na última jornada se lhe infligira aquele encontro.

Enamorei-me daquele ser, e abandonei as viagens que desterravam o meu olhar, em proas imaginadas dos meus navios de dor.

Vestia-se de uma pele fogueada pelo sol sobranceiro, que lhe adocicava o olhar. Era um cão robusto, mas cansado, cativo nos delírios da ternura que o crivaram à nascença. Dos seus olhos, espreitei-lhe a alma. Eram da cor da terra que se sonha em demência, da cor da ilha que se esqueceu, um dia, em abismos de saudade. Li um suspiro no seu olhar, mas não entendi o vale que se sulcou pelo peso de tanta dor.

Senti-lhe a solidão, companheira de um mar à deriva, que lhe foi fiel. Acorrentou-o a amargura, que não se desfazia ao abandono da memória. E o medo apossou-o de uma história que se escreveu na tristeza do olhar.

Vivera sempre na rua, ou como se fosse. Só não vive ao abandono, quem regressa ao fim do dia por um caminho que lhe serve de morada, ao encontro de um afecto que se repete, em cada dia que se sonha.

Tivera poucos amigos, e os que que ficavam um dia partiam sem se despedir. E ali ficava, acorrentado pela mágoa de não os poder seguir. E os seus dias faziam-se à espera de um amanhã, que tardava em afluir no horizonte.

Quando o conheci não estava só. A seu lado, debruçada no calor da ternura que ainda aprisionava no corpo, estava ela, uma gata esquiva e matreira, mímica graciosa na arte de encantar.

Ouvi-a ronronar em segredo, ao ouvido do cão, que se chamava josé:
- josé! - chamou-o. Ele olhou-a de soslaio, intrigado com aquela voz meiga e enternecedora, que afinal escondia um só propósito:
- É amanhã que me levas a ver o mar? - Ele riu-se do seu olhar que se transfigurara. Ao invés do olhar astuto e felino, transbordou-lhe dos olhos o brilho da ternura, que o cão sabia ser condicionado, pela sua resposta.

Não a poderia levar ao mar, estava cansado de o sonhar, e há muito que o perdera na lonjura dos montes, no tempo que lhe desfez o faro em maresia.
Mas era incapaz de lho dizer. O seu olhar demudado em incandescência de afecto, era o resquício de mar que o ancorava no mundo, o último porto que o fazia sonhar. E mentiu-lhe:
- Sim... amanhã levo-te a sonhar nas fragas do mar...
- E a velejar um navio? - Continuava risonha e sonhadora , a gata, que cativara o coração do cão.
Ele sorriu-lhe, mas emudeceu. recostou-se ainda mais no aconchego do seu corpo, e deixou-a ronronar em logros de utopia, que a coroavam de princesa na ilusão do seu mar....

(continua,...)