01/10/09

Poema do actor


O actor acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores(...)
Ninguém ama tão desalmadamente como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo ao pequeno talento humano(...)
O espantoso actor que tira e coloca e retira o adjectivo da coisa,
a subtileza da forma,e precipita a verdade(...)
Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus(...)
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor.Como a unidade do actor.
O actor é um advérbio que ramificou de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira, e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamentedo Nome.
Nome que se murmura em si, e agita, e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.Que sangra.Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo, enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.Como o corpo do actor.
Porque o talento é transformação.O actor transforma a própria acção da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.Faz crescer o acto.O actor actifica-se(...)
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.
Em estado de graça. Em compacto estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela. Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimentode onde brota a pantomina (...)
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.O actor em estado geral de graça.

Herberto Helder

Um grande poema! Dos que mais dignificam o Teatro e o actor.

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