31/12/09

2010

BOM ANO A TODOS!

E na sequência do lugar da foto, remeto-me para um poema de José Agostinho Baptista, um poeta maior dos nossos dias:

Permanência

Prolongas, à volta de uma ilha, as nefastas raízes da própria dor.
Um veleiro passa ao largo da cidade, mas permaneces
frente para a cal.
Há uma lenda sem fim sobre as tuas mágoas.
Quem acode à densa névoa, ama-te de tão longe.
Um marinheiro esquece-te, embriagadamente.
Os girassóis voltam-se para o sul.

26/12/09

Natal, do Torga

Leio o teu nome na página da noite:
Menino deus...
E fico a meditar
No milagre dobrado
de ser deus e menino.
Em deus não acredito
Mas de ti como posso duvidar?
Todos os dias nascem
meninos pobres em currais de gado.
Crianças que são ânsias alargadas
De horizontes pequenos.
Humanas alvoradas...
A divindade é o menos.

Miguel Torga

Miguel Torga, um dos gigantes da nossa poesia , foi insigne em toda a sua obra, mas os seus poemas e contos alusivos ao natal são, para mim, insuperáveis...e ao cruzar-me há pouco com este, não resisti a transpô-lo para aqui.
Este natal do Torga, é também um bocadinho meu...

24/12/09

Boas Festas!

... E, a haver prendas, que seja uma das melhores do mundo: os livros!

23/12/09

Manual do perfeito mendigo

Gesto pedindo clemência
cansa.
Modernizem a desgraça.
Ser pedinte com eficiência
é alugar uma criança
e arremessá-la aos olhos de quem passa.

Quem fala de caridade
usa a velha ferramenta
e compromete o seu papel.
Para comover a cidade
preguiçosa e sonolenta
só a criança de aluguer.

Só a criança. De baixo custo.
É pitoresca ou inefável,
sabe chorar, sabe sorrir,
exprime o pavor, o medo, o susto,
é facilmente transportável
e faz o drama explodir.
Pagam os homens comprometidos
para não verem na sua frente
os mendigos alugados,
que falsas mães, de olhos doridos,
silenciosas, mostram à gente,
como brinquedos mutilados.

Sidónio Muralha

Imagens de crianças pedintes e manipuladas por "falsas mães" ou outros traficantes de infâncias, perpassam tantas vezes por nós. Hoje, quando fui tomar um "copo natalício" com colegas, fui assolada por várias, no estacionamento, que me estenderam as mãos num apelo material e o olhar numa invocação da infância que nunca terão... Alegaram que se não lhes desse "uma moeda" seriam sovados em casa.
Porque todos temos responsabilidade, que não se hesite em ligar para o SOS Criança quando se se deparar com uma situação que implique qualquer risco para uma : 800 20 26 51 ou 21 793 16 17 (de qualquer região do país).
De imediato entrarão em contacto com a PSP, que por sua vez se encaminhará para o local e orientará a situação para instâncias judiciais. Foi o que me informaram.

20/12/09

Natal para todos?

Recebi há pouco um e-mail a dar conta de uma greve no sector das grandes superfícies alimentares (hipermercados e supermercados) agendada para o próximo dia 24 de Dezembro. Esta greve vem na sequência de uma resolução (desavergonhada) que propõe, a grosso modo e em termos práticos, o comando da vida, não só profissional mas também privada e familiar de milhares de trabalhadores. Ou seja, legaliza, por exemplo, que aos trabalhadores seja exigido, de véspera, o acréscimo de horas (gratuitas) ao seu horário normal de trabalho. Com o falso argumento de que pretendem regulamentar o horário fixo dos funcionários, exigido por lei, impõem-lhes (obrigam-nos a ...) um banco de horas (?) que lhes desregula diariamente os horários de trabalho e , claro, os familiares, até porque face a esta "proposta" das empresas de distribuição, estas pessoas podem trabalhar 12 horas durante dias a fio, com o exigível horário de descanso intercalar de uma ou duas horas... o somatório são 14 horas diárias entregues ao trabalho , mais o tempo de deslocação ao mesmo, ou de retorno a casa, o que perfaz um tempo incontável e inadmissível de privação familiar, com todas as consequências sociais ( e de saúde) que se conhecem...

Confrontado com esta mobilização de greve, respondeu assim belmiro de azevedo:
"Não acredito nesse anúncio de greve para a véspera de natal e que os sindicatos sejam duplamente irresponsáveis : criar desconforto a milhões de portugueses por um pequeno ataque de baixa qualidade. Segundo -e seria muito mais grave- ousem formar algum movimento e não deixem trabalhar quem quer."
Face a isto, e mesmo não sendo crente nem entusiasta do natal, vou evitar comprar o que quer que seja nestas superfícies nos próximos tempos porque, a existir, o Natal tem de ser para todos!, e enaltecedor da dignidade humana, nomeadamente a dos trabalhadores.
Que se combata o novo esclavagismo do nosso tempo!
Na sequência deste assunto, recomendo as seguintes leituras:
1) "Contra os negreiros" em http://combate.blogspot.com/ (16 de Dezembro, em "Vale a pena lutar" )
2) "Os novos negreiros" em http://samuel-cantigueiro.blogspot.com/ (mesma data às 00:01)

17/12/09

Mulheres da Liberdade

Não resisto a postar mais poemas da Maria Teresa Horta.
Estes, poemas de insurreição feminina no tempo da "velha senhora" (mas também tempo dos senhores...) em que muitos, homens e mulheres, ousaram, corajosamente, protestar contra a exploração e opressão fascistas.
O resultado exprime-se até hoje, em LIBERDADE e em "tomada de (novas) consciências". Sobretudo para as mulheres.
Tomada de consciência
I
Fizeste barreira
desalienada
à opressão que tinhas em casa
Da boca tiraste
a mudez _
mordaça
E em casa
gritaste
Gritaste na fábrica
a voz junta às outras
na mesma razão
_ E agora patrão?
II
Fizeste barreira
desalienada
à exploração que tinhas na fábrica
Dos pulsos tiraste
grilhetas
pesadas
Gritaste na fábrica
e gritaste em casa
a voz _ só
crescendo
vencendo o gemido
_ E agora marido?
Maria Teresa Horta in Mulheres de Abril

16/12/09

Mulheres de Abril

Mulheres de Abril
somos
mãos unidas
certeza já acesa
em todas
nós.
Juntas formamos
fileiras
decididas
ninguém calará
a nossa
voz.
Mulheres de Abril
somos
mãos unidas
na construção
operária
do país.
Nos ventres férteis
a vontade
erguida
de um Portugal
que o povo
quis.

in Mulheres de Abril


* Maria Teresa Horta

Poetisa e jornalista.
Feminista assumida , dedicou parte da sua vida a lutar pelas mulheres. Com Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno formou o grupo das "três marias", que integrou o Movimento Feminista de Portugal. São autoras do livro "Novas cartas portuguesas", que lhes valeu um processo judicial.
As gerações de mulheres portuguesas subsequentes a elas estar-lhes-ão eterna e profundamente gratas.
Que este poema se revista como um tributo a estas três grandes mulheres, e a tantas outras que sofreram torturas às mãos duma sociedade ( e ideologia) patriarcal antes de Abril.

É responsável, mais recentemente, pela antologia "A Mãe na literatura portuguesa", com poemas e prosa de vários autores em torno do tema "Mãe"

11/12/09

Primeira ode ao amor

(...)
Que desejo é este,
insensato,
que nada vence, nada apazigua,
nenhuma chama por inteiro queima,
nem sequer satisfazê-lo?

Porque não posso eu,
Porque não podemos nós, amor,
amar-nos mais,
até um aniquilamento
idêntico ao do vinho,
idêntico ao da ira,
idêntico ao da morte?
(...)

Dá-me os teus lábios.
Quero
contigo num mesmo sono mergulhado,
em mim perder-te,
perder-me em ti,
inconscientes eu e tu, mas um do outro.


*Armindo Rodrigues in Canto Fausto

Além de poeta e médico, Armindo Rodrigues foi também tradutor (traduziu, por exemplo, André Malraux, autor de A esperança, um dos "meus livros "). Foi co-fundador do PEN club português, e ,com outros autores, foi quem ajudou a pagar a primeira edição da primeira obra de José Cardoso Pires : Os caminheiros e outros contos.

09/12/09

Ser-se livre


O homem livre nunca é um
homem só

solidário
se é um homem livre


* Armindo Rodrigues
Um dos grandes neo-realistas portugueses.

07/12/09

Ary dos Santos ; Joan Didion

Destas mini-férias ressalvo dois marcos culturais: A peça de teatro no D. Maria II, " O ano do pensamento mágico" de Joan Didion, com a interpretação da grande mestra que é a Eunice Munõz, e o concerto (grandioso) de homenagem ao José Carlos Ary dos Santos, pela voz esplêndida e repleta de alma do Carlos do Carmo.

Do primeiro, ficou-me a impressão de uma história comovente e perturbadora narrada na primeira pessoa, e que não é mais do que uma reflexão aprofundada de pensamentos que nos assolam com frequência, mas fugazmente (porque a nossa ânsia de eternidade a mais não o permite), sobre a finitude da nossa existência e, mais ainda, a daqueles que amamos. Esta é a história de uma mulher (mas que poderia ser qualquer um/a de nós) que se confronta com a inimaginável e abrupta partida dos dois seres que aconchegaram a sua vida ao longo de décadas, o seu companheiro e a sua filha. É o relato da fatalidade que inevitavelmente nos sucederá a todos (até porque é assente em circunstâncias reais)... capaz de agitar os nossos medos e de emergir inquietações a que nos esquivamos em permanência. Mas é também uma história de reconciliação e de reencontro com a vida que sobeja, pela memória dos que partiram, sim, mas sobretudo pelo encargo que nos cabe em mover os sentidos da nossa existência. É, talvez, um perdão à própria morte...
A Eunice Muñoz encarrega-se desta narrativa e, goste-se ou não, ela reafirma-se com uma grande senhora do nosso palco.

O concerto do Ary.... aqui faltam-me palavras que sintetizem esse concerto indelével na minha vida. Uma casa cheia, não só de gente, mas de emoções várias onde a saudade, pareceu-me, atropelava todas as outras. Só conheço o Ary pelos poemas e pela voz de raras pessoas com quem me cruzei e que também o conheceram, muitos só de relance. Mas sempre me impressionou a força que a palavra assume nos seus poemas. Uma força bruta, que arrebata e emudece quem a lê, mas sobretudo quem a sente. A palavra, pela voz do Ary, pela mão do Ary, assume tantos contornos que é impossível caracterizá-la. Ela é emoção, ternura, paixão, humanidade, revolta, ideologia, coerência, frontalidade, ironia, humor... Lê-lo e ouvi-lo é ser-se tomado por esta amalgama de significados, que afinal só se poderá resumir desta forma: ARY!

O vídeo que antecedeu o concerto foi comovente. As palmas insurgiram-se em tantos remates dos seus versos, pois em cada um deles emergia uma mensagem sempre presente, sempre actual, capaz de revolver os nossos sentimentos.
Que Homem este! Que dignidade, que verticalidade! Um homem que na verdade nunca partiu, que é impossível deixar partir...

"Revejo tudo e redigo
meu Camarada e Amigo
Meu irmão suando pão
sem casa mas com razão.
Revejo tudo e redigo
meu camarada e amigo.

As canções que trago prenhas
de ternura pelos outros
saem das minhas entranhas
como um rebanho de potros."
(...)

01/12/09

Até breve!


Mini-férias:
Incluem amigos, teatro, exposição de Alberto Korda e um grande, grande concerto no Coliseu!
Até logo.