28/09/09

O dia seguinte...


É dia de continuar a trabalhar!

"Isto vai, meus amigos, isto vai".O Ary bem sabia...


SONETO DO TRABALHO

Das prensas dos martelos das bigornas
das foices dos arados das charruas
das alfaias dos cascos das dornas
é que nasce a canção que anda nas ruas.

Um povo não é livre em águas mornas
não se abre a liberdade com gazuas
à força do teu braço é que transformas
as fábricas e as terras que são tuas

Abre os olhos e vê. Sê vigilante
a reacção não passará diante
do teu punho fechado contra o medo.

Levanta-te meu povo. Não é tarde.
Agora é que o mar canta é que o sol arde
pois quando o povo acorda é sempre cedo.


José Carlos Ary dos Santos

27/09/09

Bertold Brecht


Porque hoje é dia de escolhermos o futuro, individual e colectivo (colectivo sobretudo!) invoco Bertold Brecht, cujo discurso poético de intervenção social e política perdura até hoje. Mais um flagrante da consciencialização, intervenção e afirmação política pela arte, que impulsionou e fundamentou muitas das minhas opções ao longo da vida. E é de um brilhantismo incontestável!
Alguns extractos dos seus textos e poemas:

1) Nada é impossível de mudar

Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural
nada deve parecer impossível de mudar.

2)Não há pior analfabeto que o analfabeto político.
Ele não ouve, não fala,
nem participa dos acontecimentos políticos.
O analfabeto político é tão burro que se orgulha de o ser e,
de peito feito, diz que detesta a política.
Não sabe, o imbecil, que da sua ignorância política
é que nasce a prostituta, o menor abandonado,
e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, desonesto,
o corrupto e lacaio dos exploradores do povo.

3)Perguntas de um Operário Letrado

Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruída,
Quem outras tantas a reconstruiu?
Em que casas da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde foram os seus pedreiros?
A grande Roma está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu?
Sobre quem triunfaram os Césares?
(...)
Bertold Brecht

26/09/09

Arca de Noé - Fim.


Seguiu a gata enquanto pôde. Dissipara-se entre os montes, aterrada de tristeza. Corria aprisionada pelo medo. O medo da sentença que se inflige na verdade...


josé arfava de cansaço, mas insistia. ensinara-lhe, um dia, que o mar era um lago onde fluíam as lágrimas dos homens.... Subiria até ao lume do monte, onde serena, se escoava uma lagoa, em fios prateados fulminados pelo sol.


Avistou uma garça, que fugia apressada no fulgor do céu:
- Viste uma gata, pequena e fulgente, devastada por enganos no releixo da verdade?
- Vi-a relampejar de medo na berma de um lago... Eu levo-te lá, mas não demoro. Perco tempo... tenho a pressa de quem parte.
Deixou-se enlevar com a garça, revolvido em vertigens, arrebatado de vozes insaciáveis do céu, ávido de afectos no clarão do reencontro.

Descobriu-a, desolada, como um vulto fulgurante, debruçada na margem da lagoa, recortada na montanha. Atirava repetidamente as folhas das árvores para a água, e deixava-as ao acaso, para deleite do vento. As folhas deslizavam silenciosas, radiantes na viagem, inquietas navegantes no pequeno chão de água.
- São os navios que resplandecem ao dobrar do horizonte.... - disse a gata , entre lágrimas, que incendiaram o coração de josé. - E agora, dizes-me por fim o que é o mar, josé?
- O mar é um poema... - hesitou o cão, comovido.
- Não mintas, josé... o mar não cabe num poema!


O sol caía de cansaço. As árvores recolhiam-se na balbúrdia da noite. Incansável, o céu aguardava pela lua. O lago escurecia no recato das sombras. As estrelas insurgiam do silêncio dos pássaros.
E no fundo do mar, que carrego em segredo, vi dois seres aninhados pelo mesmo destino.
- Cheguei tarde? - perguntou o poeta, metade gato, metade cão.
- Não. Nunca é tarde para chegar!... a uma vida.

fim.

24/09/09

Arca de Noé - Parte II


Era uma gata pequena e soturna. Tinha nos olhos o baço de um verde que não pude entender. Sobrevivia de fábulas, cismou numa ilha de lendas do mar, solitária premente nos enganos da vida. Esquivou-se de afectos, e desfiou-se nos dias, em desalento, narrando estórias para viver.

Conheceu-a ao acaso numa ponte, filigrana de encontros e despedidas, quando ao longe lhe acenava um adeus daquele que vivia dentro de si. O cão tinha um Poeta. Um transeunte da memória que insistia em não partir. De vez em quando encontravam-se sobre os escombros de um passado que os uniu. Ficavam em silêncio, e afagavam-se em saudade, nas promessas de um futuro em que nenhum acreditava. Deixava-o partir, para o poder esperar....e sonhar.

A seu lado, a gata perguntava-lhe:
- Porque partiu o teu Poeta?
- Partiu, talvez, para poder chegar...
- Aonde? - Interrompia-o no pulsar da indignação
- Ao fim do seu destino...
- Quem é o destino? - Indagava-o perplexa.
- É um archeiro, que se inflecte nos mistérios da vida.

A gata não insistia. Tomara-se pelo ensejo de ver navios, e logo se desprendia de qualquer mistério, que a fizesse desviar do mar.
Era sempre a primeira a acordar, e naquele dia antecipou-se na alvorada. Corria desvairada pela enseada, espairecia nos segredos das árvores, espantava o silêncio dos pássaros, arreliava as mariposas, assustava ratinhos perdidos na encosta, ensarilhava-se com os coelhos que a desafiavam nas tocas... e ria-se como nunca, divertida, aloucada de visões de uma planície imensurável de água, tingida de sons e de brilhos, onde se embebiam os navios que sonhava.
José também ria, incapaz de a repreender e reprimir-lhe a traquinice.
A gata soltava miados de euforia, cantorias de aleluia nos voos da alvorada. E vivamente mordiscava josé para o acordar. E josé fingia-se preguiçoso, para perdurar aquele afago...

- josé , temos de partir para o mar! - gritava ela jovial. E foi quando josé sentiu a convulsão da verdade que adiava. O mar!...
- Perdi-me do mar há tanto tempo... já não sei o caminho para lá chegar... - confessou-lhe, por fim.

Ah, as verdades.... assassinas impiedosas que se debatem nos estreitos do norte, auspícios de morte, no coração de uma vida que se contorce de sonhos....


(Continua...)

22/09/09

Arca de Noé - Parte I


Um conto, um tributo a dois seres especiais, escrito há uns anos :))


Distraí-me um dia enquanto vigilava o horizonte, sempre velado em segredos que não se desvelavam, no corrupio estonteante dos grandes navios que o cortavam.

Nas encostas do meu refúgio, que se debruçavam no mar, vi dois seres que se aninharam em mistérios de vida e ao abandono do que ditaram os homens. Brilhavam na encosta íngreme de afectos, e reluziam na cumplicidade de quem derrubou uma fronteira. Ele era um cão, envelhecido pelo destino, seteiro trocista, que na última jornada se lhe infligira aquele encontro.

Enamorei-me daquele ser, e abandonei as viagens que desterravam o meu olhar, em proas imaginadas dos meus navios de dor.

Vestia-se de uma pele fogueada pelo sol sobranceiro, que lhe adocicava o olhar. Era um cão robusto, mas cansado, cativo nos delírios da ternura que o crivaram à nascença. Dos seus olhos, espreitei-lhe a alma. Eram da cor da terra que se sonha em demência, da cor da ilha que se esqueceu, um dia, em abismos de saudade. Li um suspiro no seu olhar, mas não entendi o vale que se sulcou pelo peso de tanta dor.

Senti-lhe a solidão, companheira de um mar à deriva, que lhe foi fiel. Acorrentou-o a amargura, que não se desfazia ao abandono da memória. E o medo apossou-o de uma história que se escreveu na tristeza do olhar.

Vivera sempre na rua, ou como se fosse. Só não vive ao abandono, quem regressa ao fim do dia por um caminho que lhe serve de morada, ao encontro de um afecto que se repete, em cada dia que se sonha.

Tivera poucos amigos, e os que que ficavam um dia partiam sem se despedir. E ali ficava, acorrentado pela mágoa de não os poder seguir. E os seus dias faziam-se à espera de um amanhã, que tardava em afluir no horizonte.

Quando o conheci não estava só. A seu lado, debruçada no calor da ternura que ainda aprisionava no corpo, estava ela, uma gata esquiva e matreira, mímica graciosa na arte de encantar.

Ouvi-a ronronar em segredo, ao ouvido do cão, que se chamava josé:
- josé! - chamou-o. Ele olhou-a de soslaio, intrigado com aquela voz meiga e enternecedora, que afinal escondia um só propósito:
- É amanhã que me levas a ver o mar? - Ele riu-se do seu olhar que se transfigurara. Ao invés do olhar astuto e felino, transbordou-lhe dos olhos o brilho da ternura, que o cão sabia ser condicionado, pela sua resposta.

Não a poderia levar ao mar, estava cansado de o sonhar, e há muito que o perdera na lonjura dos montes, no tempo que lhe desfez o faro em maresia.
Mas era incapaz de lho dizer. O seu olhar demudado em incandescência de afecto, era o resquício de mar que o ancorava no mundo, o último porto que o fazia sonhar. E mentiu-lhe:
- Sim... amanhã levo-te a sonhar nas fragas do mar...
- E a velejar um navio? - Continuava risonha e sonhadora , a gata, que cativara o coração do cão.
Ele sorriu-lhe, mas emudeceu. recostou-se ainda mais no aconchego do seu corpo, e deixou-a ronronar em logros de utopia, que a coroavam de princesa na ilusão do seu mar....

(continua,...)

21/09/09

Viagem




Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
o mar...
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).


Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.

Miguel Torga


Um poeta gigante, uma torga de onde parti há uns anos, no rasto do mar. Para trás ficaram os penedos do meu temor, a agrura dos meus anos , a saudade do reino que o vate eternizou... E quantas vezes, no delírio dos seus poemas, as lágrimas desaguavam no pequeno corgo que se esgueirava na cidade onde um dia cheguei, com a ânsia fremente de partir...

E as viagens repetem-se, na teimosia, vigente no delírio, dos que (ainda) ousam sonhar.

19/09/09

Mensagem fundamental

Palavras fundamentais

Faz com que a tua vida seja
sino que repique
ou sulco onde floresça e frutifique
a árvore luminosa da ideia.
Alça a tua voz sobre a voz sem nome
de todos os demais e faz com que ao lado
do poeta se veja o homem.

Enche o teu espírito de lume;
procura as eminências do cume
e se, o esteio nodoso do teu báculo
encontrar algum obstáculo ao teu intento,
sacode a asa do atrevimento
perante o atrevimento do obstáculo.

Nicolás Guillén

E, assim, talvez a obra da nossa vida se possa cumprir...

17/09/09

Nicolás Guillén


Dois excertos de poemas de Nicolás Guillén, cuja poesia popular afro-antilhana se reveste, sobretudo,de ideais. E de luta. Um dos poemas é ilustrativo do carácter político-social da sua poesia. O segundo , extracto de um longo e belíssimo poema , onde afirma o seu protesto racial, pelo qual se debateu no curso da sua vida e obra, que perdura até hoje por "ser obra de todos".


Burgueses

"Não me dão pena os burgueses
vencidos. E quando penso que vão a dar-me pena,
aperto bem os dentes e fecho bem os olhos.
Penso em meus longos dias sem sapatos nem rosas.
Penso em meus longos dias sem abrigos nem nuvens.
Penso em meus longos dias sem camisas nem sonhos.
Penso em meus longos dias com minha pele proibida.
Penso em meus longos dias."
(...)


Elegia a Emmet Till *

(...)"ora , oh Mississípi,
oh velho rio irmão dos negros!,
agora um menino frágil,
pequena flor das tuas margens,
ainda na raíz das tuas árvores,
não pedra do teu leito,
não caimão das tuas águas:
um menino apenas,
um menino morto, assassinado e só,
negro."
(...)
* Emmet Till foi um menino barbaramente assassinado às mãos de dois brancos na América racista dos anos 50, no Mississipi, por ter dito um piropo a uma mulher branca.

15/09/09

Regresso


Há muito que parti.
Abandonei as searas onde nunca vi os
desígnios de deus.
Abandonei a fé.
Caminhei sem destino,
procurei a árvore secreta dos irmãos,
e,com saudade e desvario, abandonei as casas.


Escondi-me.
escondi o último verso numa noite sem fim.
E hoje escrevo para ti que às vezes me escreves,
do outro lado das terras.
Conhecerei um dia as falésias onde o garajau paira,
quando chegar, pela madrugada,
às portas do teu sonho?


De pé, sobre o promontório,
olhas para longe, para os meus barcos que
naufragaram.


José Agostinho Baptista




Há-de haver sempre um regresso, em cada vez que nascer, de ti, outra palavra...


14/09/09

Guernica



...porque nunca é demais protestar contra a violência, a guerra, a dor, a atrocidade do homem sobre o homem. E este quadro, dos meus predilectos, cumpre plenamente esse protesto. Traduz um grito imenso, um olhar sobre o horror, um urro de "nunca mais!".

É a arte como instrumento de luta e vector político.

13/09/09

José Agostinho Baptista


Conheci-o há uns anos, primeiro pelos livros, depois pessoalmente. Identifiquei-me de imediato com a sua poesia. Uma poesia que transcrevia a ilha de um modo tão romantizado, à luz da distância da memória e dos seus afectos. Acho-o um poeta único no panorama poético actual, um destilador de palavras, um derradeiro romântico. As palavras, por ele, assumem-se dolorosas, e camufladas de uma beleza e ternura desconcertantes. Houve alguém que definiu bem a sua poesia como uma beleza que magoa, ou uma dor que comove.


E é assim que se reveste a poesia de José Agostinho Baptista, palavras doces e ternas que denunciam dores irreparáveis. Uma elegia , triste e amarga, que descreve os quintais recônditos da sua bondade , onde o homem e o poeta se confundem. E se fundem.


BASALTO

Dizias que em tudo lias o meu nome mas eu
só conheço a melancolia que habita o outro
lado das palavras.

Promete-me que não foges, disseste depois, à
boca de um túnel,
na cidade que ruía.

Pensa agora, ao acenderes uma candeia no alpendre onde te
sentas ao lado dos cães, na ilha de deus, pensa que já estou aí,
que trago no meu rosto tardio duas rosas de
basalto,
que sou o anjo triste,
que regressei para sempre do continente das
trevas.

José Agostinho Baptista

www.jabaptista.com

Meu amigo, nem anjos nem poetas se podem arrediar das "rosas de basalto". Nem dos túneis de medo que se escondem na cidade das tuas trevas...




12/09/09

Aos Amigos

Este é um daqueles poemas que não se esquece e se finca no âmago de quem (ainda) professa este valor, o da Amizade.

AMIGO

Mal nos conhecemos
inaugurámos a palavra «amigo».

«Amigo» é um sorriso de boca em boca,
um olhar bem limpo,uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
um coração pronto a pulsar na nossa mão!

«Amigo» (recordam-se, vocês aí,escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!

«Amigo» é o erro corrigido,
não o erro perseguido, explorado,
é a verdade partilhada, praticada.

«Amigo» é a solidão derrotada!
«Amigo» é uma grande tarefa,
um trabalho sem fim,
um espaço útil,
um tempo fértil,

«Amigo» vai ser,
é já uma grande festa!

Alexandre O'Neill

11/09/09

11 de Setembro

Que mais nenhum onze de Setembro se repita!,em qualquer lugar do mundo, em qualquer outro dia da História!

Pela voz de Victor Jara, algures entre o 11 de Setembro de 1973 e o dia da sua morte, em 16 de Setembro:

Somos cinco mil
nesta pequena parte da cidade.
Somos cinco mil.

Quantos seremos no total,
nas cidades e em todo o país?
Somente aqui, dez mil mãos
que semeiam e fazem andar as fábricas.

Quanta humanidade com fome, frio, pânico,
dor, pressão moral, terror e loucura!
Seis de nós se perderam
no espaço das estrelas.
Um morto, um espancado
como jamais imaginei
que se pudesse espancar um ser humano.

Os outros quatro
quiseram livrar-se de todos os temores
um saltando no vazio,
outro batendo a cabeça contra o muro,
mas todos com o olhar fixo da morte.

Que espanto causa o rosto do fascismo!
Colocam em prática seus planos com precisão arteira,
sem que nada lhes importe.
O sangue, para eles, são medalhas.

A matança é acto de heroísmo.
É este o mundo que criaste, meu deus?
Para isto os teus sete dias de assombro e trabalho?

Nestas quatro muralhas só existe um número
que não cresce, que lentamente quererá mais morte.

Mas prontamente me golpeia a consciência
e vejo esta maré sem pulsar,
mas com o pulsar das máquinas
e os militares mostrando seu rosto de parteira,
cheio de doçura.

E o México, Cuba e o mundo?
Que gritem esta ignomínia!
Somos dez mil mãos a menos que não produzem.
Quantos somos em toda a pátria?
O sangue do companheiro Presidente
golpeia mais forte que bombas e metralhas.
Assim golpeará nosso punho novamente.

Como me sai mal o canto
quando tenho que cantar o espanto!
Espanto como o que vivo
como o que morro, espanto.

De ver-me entre tantos
e tantos momentos do infinito
em que o silêncio e o grito
são as metas deste canto.

O que vejo nunca vi,
o que tenho sentido e o que sinto
fará brotar o momento...

10/09/09

O caminho das aves


Pelas mãos de um amigo, há uns meses, chegou-me este livro, "O caminho das aves". Ao esbarrar nas palavras do José Casanova, saíu isto:


Há livros que nos engolem, que se avolumam, gigantes, quais ondas envolventes, que nos revolvem, que remexem sentimentos, desordenam conceitos, desferem lágrimas, movem sorrisos…. E fazem girar o mundo num eixo que nos erige no melhor que somos. Ou podemos ser…. E alicerçam fundações de humanidade no desfilar das páginas, alçam sentimentos, hasteando as bandeiras da Liberdade, da Amizade…. E pergunto-me (pergunto-te!), poderão edificar-se valores mais excelsos?!
Este livro inflamou-me numa espécie de sinestesia emocional, pois os conceitos reconvertiam-se, as lágrimas escorriam-me entre sorrisos, “lágrimas doces” que me surpreendiam no despontar de sentimentos tão sublimes, na perfeição de actos que dignificam os homens. Por vezes chorei, “porque chorar é forma outra de rir”.
E eram grandes, estes homens que nasceram do coração do Casanova. Derrubadores de “injustiças que passeiam pela rua com passos seguros”. Que fizeram da luta uma arma e não se acomodaram na espera sem esperança, qual o silêncio da espera infrutífera de Godot. Pelo contrário, a esperança serpenteou toda a trama, sem fingimento, movendo e incitando cada um destes homens no combate solidário (“porque um homem só não vale nada” ) por um futuro em que todos os homens seriam iguais, em que o cuidado colectivo se sobreporia ao interesse individual, sem contudo o inviabilizar. Eram os tais “sonhadores que pensam e os pensadores que sonham”, que reverberavam Marx e Engels. Homens que acusavam a desigualdade (de classes, mas não só…), os abusos das elites escancarados pelo fosso que apartava a luta operária do despotismo político e industrial. Mas que sempre acreditaram e lutaram para que “os vencidos de agora fossem os vencedores de amanhã”.
Reescreveu-se no desfiar deste livro as histórias de meninos que “sonharam sonhos”, que “buscaram caminhos” e se fizeram homens, solidários, corajosos, leais. A cada um deles o atributo singular da Amizade, esse sentimento que é par, que é portentoso.
E traz-nos memórias antigas, “de outros mundos, outras gentes”, revigorando os sonhos que desfizemos no repelão da indigência mundana que nos corrompe e usurpa a cada dia a capacidade de sonhar. E até de lutar…
Este livro vinca-nos. No meu espírito deixou marcas indeléveis, indestrutíveis. E ocupou desde logo o recanto quase secreto da estante dos meus afectos. Está ao lado da Mãe e dos Esteiros, duráveis na mensagem, eternizados, em mim, pelo meu recorrente retorno. E da Cabana do pai Tomás, livro primeiro que me mudou, quando despontava a consciência ainda embrionária de entendimentos que se firmaram pela vida: a Liberdade, a Amizade! Valores que o Caminho das aves resgata. E que reafirma com destreza comovente.
Este livro é, aliás uma apologia de incursões literárias. E musicais. E cinéfilas. Se eu fosse professora de português, como um dia sonhei, remeteria este livro para o cânone académico do secundário, quando os amigos nos surgem quais “bandos de aves que partem juntas e regressam juntas”. Quando despontam os primeiros sonhos, quando
se enforma a nossa luta e começamos a debater-nos por um colectivo humanístico, face à infecundidade do individualismo.
O caminho das aves é sem dúvida um louvor a esta “forma superior de amor “ que é a Amizade.

Enquanto o lia, tive um convite para uma festa de aniversário de uma amiga. Uma amiga que me acompanha há uma vida, entre tristezas e deambulações várias, com quem cresci, que sem dúvida também me fez crescer. Partimos da mesma torga mas ramificamo-nos em sentidos diferentes, e nem isso impediu que a nossa amizade se fincasse e confirmasse em diversos momentos. Quando me convidou para a festa, imaginei de imediato o aparato social que lhe estaria associado, a exuberância, a futilidade…e cogitei uma desculpa para justificar a minha recusa. E assolou-me a consciência pelas palavras discorridas no livro, “entre um cantar do galo e o outro irás trair-me” e pelas palavras dela, “a tua presença é importante para mim”, e quando estava na eminência de lhe mentir para não ir, soou-me a frase crucial que resume toda a moralidade deste livro “A amizade é tudo”, como uma batida insistente e zoante , tão forte que de imediato se pronunciou a vitória. A vitória da amizade. Tam tam tam tam!!! E é claro que eu fui testemunhar a emoção da minha amiga.
Porque a “Amizade é entrega total em troca de nada” !

09/09/09

Sra Gata, 14 anos, co-autora do "Catarina de todos nós"


Surgiu-me um dia, há 14 anos, como alguns imprevistos que se revertem em alegrias perenes na minha vida. Seria a intermediária para a entregar a um "dono", que eu arranjara, sensibilizada pelo destino que lhe caberia se não lhe arranjasse um lar. Ficaria comigo uns dias de acordo com o combinado, antes da entrega , que a levaria para o Porto.
Era uma estudante universitária, a residir num quarto, e acatei a decisão de a albergar mesmo ali por uns dias, não obstante o incómodo óbvio que isso me causava.

Passaram dias a que se sucederam semanas, e em cada dia a repetição de gestos que dimensionaram a imensidão do afecto que se agigantava em nós, sem que nenhuma se apercebesse. Acordava-me de madrugada com miados que desencadeavam em mim uma resmunguice tal, que me forçava a levantar para lhe dar de comer, mais para a calar do que para a alimentar. Ela, ainda insatisfeita, apesar do prato estar atestado com os croquetes mal cheirosos que me nauseavam logo de manhã, perseguia-me até à cama, no meu regresso, para me sussurrar uns quaisquer mios e aquele estertor enternecedor que é o ronronar dos gatos. Entre marradas e cabeçadas que investia com meiguice no meu rosto, e as minhas rejeições que a atiravam para fora da cama , ao que ela retorquia com regressos repetidos, acabava sempre vencida pela sua teimosia, e envolvia-a, pequenina e meiga, nos meus braços e afagos, e assim ficávamos por um tempo. Tempo que correspondia sempre à sua vontade, não será preciso dizê-lo...

E depois era vê-la saltitar , enlouquecida de alegria para cima da minha secretária, e entreter-se de imediato com os lápis que escorregavam aos seus toques delicados, a princípio, depois aguerridos, com força e determinação para os atirar para o chão.
Entre tantas tropelias, os meus gritos de reprimenda, as palmas (Nunca palmadas!!) que batia para a assustar e demover da vontade de invadir tumultuosamente o chão daquele quarto, com fotocópias, canetas, borrachas e até bolachas, a nossa amizade foi-se insurgindo de mansinho, quase tão matreira como a Gata.
Sim, Gata com maiúscula, pois é o seu nome. Nome esse escolhido por si, quando , já decidida a ficar com ela, a tentei chamar de "Mia", nome catita, achava-o bonito para uma gatinha miadora como ela. Recusou-o, ignorava tal chamamamento, e as minhas tentativas de a educar eram logradas face a tamanha indiferença.
Por acidente, chamei-a de gata. Espanto meu, olhou-me, miou e veio ao meu encontro, assim, tudo de uma vez. Que mais poderia eu depreender? Albergara o ser com mais carácter que me poderia caber.

E um dia, quando a vieram buscar, só fui capaz de proferir que ali, ao pé de mim, naquele quarto pequeno, com uma pequena varanda que a enternecia durante horas, junto a um alpendre, imbuída em pensamentos e vislumbres, ali naquele recanto afectivo, era o seu lar!

Hoje, volvidos 14 anos, que na sua dimensão felina são muitos, muitos mais, já não se atira das estantes, nem corre tresloucada pela casa (embora mantenha o péssimo hábito de me acordar pela aurora..). Resigna-se, aconchegada, à quietude dos seus dias, à comodidade do seu sofá, ao amparo dos meus afectos. E aqui, perto de mim, enquanto a tributo neste blogue, insiste na candura que sempre a revestiu, vociferando, enternecida , o ronrom que me comove.

(Acho que me pede para ser co-autora deste blogue... pensando bem, é-o por direito )
:)

Queixa das almas jovens censuradas


Dão-nos um lírio e um canivete
E uma alma para ir à escola
E um letreiro que promete
Raízes, hastes e corola.

Dão-nos um mapa imaginário
Que tem a forma duma cidade
Mais um relógio e um calendário
Onde não vem a nossa idade.

Dão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos o prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocência.

Dão-nos um barco e um chapéu
Para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
Levado à cena num teatro.

Penteiam-nos os crânios ermos
Com as cabeleiras dos avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sós.

Dão-nos um bolo que é a história
Da nossa história sem enredo
E não nos soa na memória
Outra palavra para o medo.

Temos fantasmas tão educados
Que adormecemos no seu ombro
Sonos vazios, despovoados
De personagens do assombro.

Dão-nos a capa do evangelho
E um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um espelho
Para pentearmos um macaco.

Dão-nos um cravo preso à cabeça
E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procura.

Dão-nos um esquife feito de ferro
Com embutidos de diamante
Para organizar já o enterro
Do nosso corpo mais adiante.

Dão-nos um nome e um jornal,
Um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
Que espeta os cornos no destino.

Dão-nos marujos de papelão
Com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
Não é a vida. Nem é a morte.

Natália Correia

ps -Há canções que nos sustêm, suspendem, comovem... se um dia tiver de escolher "a minha canção", será esta.

08/09/09

Os olhos das crianças

Dos poemas mais comoventes que li, de Sidónio Muralha:
(e por este poema também se viaja aos "capitães da areia", aos "esteiros"... e a tantos meninos "com lágrimas no rosto"que povoam a nossa realidade.)

Atrás dos muros altos com garrafas partidas
bem para trás das grades do silêncio imposto
as crianças de olhos de espanto e de medo transidas
as crianças vendidas alugadas perseguidas
olham os poetas com lágrimas no rosto.

Olham os poetas as crianças das vielas
mas não pedem cançonetas mas não pedem baladas
o que lelas pedem é que gritemos por elas
as crianças sem livros sem ternura sem janelas
as crianças dos versos que são como pedradas.

07/09/09

Violeta

A inaugurar a incursão poética deste blogue, Nicolás Guillén:

Não quero a glória.
A glória é inveja, quimeras, enganos e intranquilidade.
Eu pouparei à história
banal a minha memória.
Mais que os aplausos - enganosa escória -
amo um ceptro augusto: a tranquilidade.
Não quero que o mundo coroe a minha fronte.
Eu quero ser fonte,
não quero ser mar.
Não quero ser condor que o céu levante o seu voo.
A calhandra não pode voar até ao céu,
mas sabe cantar.

Catarina de todos nós: 7 de Setembro de 2009

O título deste bogue deve-se a um título homónimo de um livro infantil de Sidónio Muralha, um hino tributário a essa mulher, Catarina Eufémia, que tem inspirado gerações a lutar pelos direitos mais elementares da humanidade.
Foi criado, quase por brincadeira, sem qualquer pretensão, que não seja a de difundir e partilhar alguns gostos pessoais, como a poesia, o teatro, ou outras expressões literárias e artísticas. Porventura, pelo meio, poderá assumir outro carácter que se julgue pertinente, ou necessário. Ou simplesmente o que vier...
E assim se lança uma primeira pedra a esta aventura cibernética, sem qualquer delineamento, muito embrionária e em ritmo de descoberta.