22/09/09

Arca de Noé - Parte I


Um conto, um tributo a dois seres especiais, escrito há uns anos :))


Distraí-me um dia enquanto vigilava o horizonte, sempre velado em segredos que não se desvelavam, no corrupio estonteante dos grandes navios que o cortavam.

Nas encostas do meu refúgio, que se debruçavam no mar, vi dois seres que se aninharam em mistérios de vida e ao abandono do que ditaram os homens. Brilhavam na encosta íngreme de afectos, e reluziam na cumplicidade de quem derrubou uma fronteira. Ele era um cão, envelhecido pelo destino, seteiro trocista, que na última jornada se lhe infligira aquele encontro.

Enamorei-me daquele ser, e abandonei as viagens que desterravam o meu olhar, em proas imaginadas dos meus navios de dor.

Vestia-se de uma pele fogueada pelo sol sobranceiro, que lhe adocicava o olhar. Era um cão robusto, mas cansado, cativo nos delírios da ternura que o crivaram à nascença. Dos seus olhos, espreitei-lhe a alma. Eram da cor da terra que se sonha em demência, da cor da ilha que se esqueceu, um dia, em abismos de saudade. Li um suspiro no seu olhar, mas não entendi o vale que se sulcou pelo peso de tanta dor.

Senti-lhe a solidão, companheira de um mar à deriva, que lhe foi fiel. Acorrentou-o a amargura, que não se desfazia ao abandono da memória. E o medo apossou-o de uma história que se escreveu na tristeza do olhar.

Vivera sempre na rua, ou como se fosse. Só não vive ao abandono, quem regressa ao fim do dia por um caminho que lhe serve de morada, ao encontro de um afecto que se repete, em cada dia que se sonha.

Tivera poucos amigos, e os que que ficavam um dia partiam sem se despedir. E ali ficava, acorrentado pela mágoa de não os poder seguir. E os seus dias faziam-se à espera de um amanhã, que tardava em afluir no horizonte.

Quando o conheci não estava só. A seu lado, debruçada no calor da ternura que ainda aprisionava no corpo, estava ela, uma gata esquiva e matreira, mímica graciosa na arte de encantar.

Ouvi-a ronronar em segredo, ao ouvido do cão, que se chamava josé:
- josé! - chamou-o. Ele olhou-a de soslaio, intrigado com aquela voz meiga e enternecedora, que afinal escondia um só propósito:
- É amanhã que me levas a ver o mar? - Ele riu-se do seu olhar que se transfigurara. Ao invés do olhar astuto e felino, transbordou-lhe dos olhos o brilho da ternura, que o cão sabia ser condicionado, pela sua resposta.

Não a poderia levar ao mar, estava cansado de o sonhar, e há muito que o perdera na lonjura dos montes, no tempo que lhe desfez o faro em maresia.
Mas era incapaz de lho dizer. O seu olhar demudado em incandescência de afecto, era o resquício de mar que o ancorava no mundo, o último porto que o fazia sonhar. E mentiu-lhe:
- Sim... amanhã levo-te a sonhar nas fragas do mar...
- E a velejar um navio? - Continuava risonha e sonhadora , a gata, que cativara o coração do cão.
Ele sorriu-lhe, mas emudeceu. recostou-se ainda mais no aconchego do seu corpo, e deixou-a ronronar em logros de utopia, que a coroavam de princesa na ilusão do seu mar....

(continua,...)

Sem comentários: