24/09/09

Arca de Noé - Parte II


Era uma gata pequena e soturna. Tinha nos olhos o baço de um verde que não pude entender. Sobrevivia de fábulas, cismou numa ilha de lendas do mar, solitária premente nos enganos da vida. Esquivou-se de afectos, e desfiou-se nos dias, em desalento, narrando estórias para viver.

Conheceu-a ao acaso numa ponte, filigrana de encontros e despedidas, quando ao longe lhe acenava um adeus daquele que vivia dentro de si. O cão tinha um Poeta. Um transeunte da memória que insistia em não partir. De vez em quando encontravam-se sobre os escombros de um passado que os uniu. Ficavam em silêncio, e afagavam-se em saudade, nas promessas de um futuro em que nenhum acreditava. Deixava-o partir, para o poder esperar....e sonhar.

A seu lado, a gata perguntava-lhe:
- Porque partiu o teu Poeta?
- Partiu, talvez, para poder chegar...
- Aonde? - Interrompia-o no pulsar da indignação
- Ao fim do seu destino...
- Quem é o destino? - Indagava-o perplexa.
- É um archeiro, que se inflecte nos mistérios da vida.

A gata não insistia. Tomara-se pelo ensejo de ver navios, e logo se desprendia de qualquer mistério, que a fizesse desviar do mar.
Era sempre a primeira a acordar, e naquele dia antecipou-se na alvorada. Corria desvairada pela enseada, espairecia nos segredos das árvores, espantava o silêncio dos pássaros, arreliava as mariposas, assustava ratinhos perdidos na encosta, ensarilhava-se com os coelhos que a desafiavam nas tocas... e ria-se como nunca, divertida, aloucada de visões de uma planície imensurável de água, tingida de sons e de brilhos, onde se embebiam os navios que sonhava.
José também ria, incapaz de a repreender e reprimir-lhe a traquinice.
A gata soltava miados de euforia, cantorias de aleluia nos voos da alvorada. E vivamente mordiscava josé para o acordar. E josé fingia-se preguiçoso, para perdurar aquele afago...

- josé , temos de partir para o mar! - gritava ela jovial. E foi quando josé sentiu a convulsão da verdade que adiava. O mar!...
- Perdi-me do mar há tanto tempo... já não sei o caminho para lá chegar... - confessou-lhe, por fim.

Ah, as verdades.... assassinas impiedosas que se debatem nos estreitos do norte, auspícios de morte, no coração de uma vida que se contorce de sonhos....


(Continua...)

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