02/02/10

Agonia


Talvez o caos,
o quarto abandonado, o fardo da agonia,
talvez o copo estilhaçado entre dentes,
a pluma que escreve em estranha língua de
cegueira e pavor,
talvez tudo isso seja digno de ti ou desta
mágoa
que faz aqui o seu abrigo e me acompanha
derradeiramente
pelos dias que virão como um animal
ferido,
a águia, o antílope, a noite,
a noite que já não contém o desejo, o
alento,
nada que possa ser dito e feito,
a noite das minhas mãos frias, agarradas
à garganta,
aos seus gritos que se voltam para dentro,
para as fogueiras sangrentas do amor.
José Agostinho Baptista

31/01/10

Prevenção e primeiros socorros a animais V

A VELHICE

Um gato terá uma longevidade variável em função da raça e, claro, dos cuidados que lhe forem prestados (já para não falar de tantos acasos e perigos que inspiram estes amigos...).
Ter em casa um gato além de 17 anos é um feito. No entanto existem vários relatos de gatos que viveram além dos 20 anos (pessoalmente conheci um com 24 anos).
A sra. Gata, ilustrada na foto, por exemplo, faz 15 anos em Maio e tem sido um exemplar de saúde ao longo deste tempo, provavelmente beneficiada pela nossa convivência...
Mas é um facto que a geriatria animal requer alguma atenção especial.
Também eles sofrem algumas alterações físicas e em provecta idade pode acontecer que emagreçam bastante. O apetite, esse , pode diminuir ou aumentar, assim como a sede. Estas situações podem resultar do deficiente funcionamento orgânico, como o fígado e o rim.
Se o apetite aumentar, deve tentar acompanhar-se essa situação distribuindo a quantidade de alimento que o animal requer ao longo de várias refeições. Existem rações comerciais adequadas a esta fase da vida, com aporte proteico e vitaminico suficiente e adequado e, se for possível adquiri-las, não é requerido mais nenhum acréscimo alimentar.
Com a idade podem sofrer de preguiça intestinal e para este problema, basta adicionar à comida uma colher de chá de azeite duas vezes por semana. Se não resultar é conveniente adquirir , no veterinário, um laxativo apropriado.
Na velhice a boca do nosso amigo exige um cuidado especial. A ração seca , por si, ajuda mecânicamente à limpeza dos dentes, mas, creiam, que a lavagem dos dentes aos nossos velhotes uma ou duas vezes por semana , não devia ser posta de lado. Ao longo da vida forma-se muito tártaro e nesta fase, mais gulosos, tendem a comer guloseimas que agravam essa situação, danificando as gengivas e facilitando a queda de dentes. O ideal é que ao longo da vida lhes sejam feitas as destartarizações necessárias num centro veterinário... É que as inflamações bucais e os dentes cariados estão directamente relacionados com danos renais e hepáticos, e nesta fase da vida sujeitá-los a uma anestesia geral pode ser arriscado.
Com a velhice os gatos tendem a descuidar-se na sua higiene (eles que são tão orgulhosamente limpos e aprumados ao longo da vida...), pelo que se pode dar uma "ajuda" escovando-os regularmente ou dando-lhes banho com produtos secos comerciais, que se podem adquirir em centros de atendimento animal.
Uma situação que pode ocorrer é que estes velhos amigos percam o controlo dos intestinos ou da bexiga. Neste caso, tem de se recorrer mesmo ao médico veterinário para averiguar o problema, que pode ser uma cistite (infecção da bexiga), e tratá-lo convenientemente.
A surdez ou a perda de visão surgem pouco a pouco e aí temos de os auxiliar e adaptar-lhes o espaço físico às suas limitações e protegendo-os de perigos, como cães, fogueiras etc. Por exemplo, não se deve , nestas circunstâncias, mudar o local do prato de comida e da água.

Esta fase pode ser medicamente assistida, não havendo resoluções milagrosas, existem medicamentos capazes de auxiliar os nossos velhotes neste período, nomeadamente ao nível da vitalidade.

Certo é que os nossos companheiros de uma vida nos merecem, nesta fase, uma compreensão redobrada. E merecem mesmo!

30/01/10

Saudade


Saudade- o que será... não sei... procurarei sabê-lo
em dicionários antigos e poeirentos
e noutros livros onde não achei o sentido
desta doce palavra de perfis ambíguos.


Dizem que azuis são as montanhas como ela,
que nela se obscurecem os amores longínquos
e um bom e nobre amigo meu ( e das estrelas)
a nomeia num tremor de cabelos e mãos.

Hoje em Eça de Queiroz sem cuidar a descubro
seu segredo se evade, sua doçura me obceca
como uma mariposa de estranho e fino corpo
sempre longe- tão longe!- de minhas redes tranquilas.

Saudade.... Oiça, vizinho, sabe o significado
desta palavra branca que se evade como o peixe?
Não... e me treme na boca o seu tremor delicado...
Saudade...

*Pablo Neruda

... que dilui a cor do mar, e esbate o tempo que me sobra
para o transpor
tornando-o mais perto...

25/01/10

Prevenção e primeiros socorros a animais IV

CUIDADOS BÁSICOS A TER COM O ANIMAL

1) Prevenção de acidentes:
- Não viajar com um gato sentado ao colo ou solto, com risco de o animal provocar inadvertidamente um acidente. Utilizar uma caixa de transporte (evitar de cartão, o animal pode rasgá-la). Por lei o transporte em contentor é obrigatório.
- Antes de viajar restringir a comida e água ao animal mais ou menos 2 horas antes. Cuidado: em tempo quente é importante dar-lhe de beber de vez em quando.
- Em casa: cuidado com fios eléctricos, os animais jovens gostam de os roer (choque!)
- Não deixar ao alcance do animal qualquer produto nocivo (detergentes, insecticidas, por ex.)
Nota: os gatos vadios estão sujeitos a mais acidentes, desde atropelamentos, lutas e doenças graves, e aqui a única coisa a fazer é vaciná-los e desparasitá-los para os defender de alguns desses riscos. Aprisioná-los jamais! (Sobre socorros a gatos que nos chegam a casa feridos falarei num próximo post).
2) Cuidados primários
Antes de mais é importante levar, pelo menos uma vez por ano, o animal ao Veterinário, para uma consulta de rotina e actualização da vacinação, muito importante se se quer prevenir algumas doenças que acometem os felinos, como a doença da imunodeficiência felina (provocada por vírus parecido ao da SIDA nos humanos).
No entanto a prevenção passa primariamente pelos donos e, como tal, deve estar-te atento ao seguinte:
- Boca: inspeccioná-la de vez em quando. Ver se tem tártaro nos dentes (substância castanha nos dentes), inflamação da gengiva (ficam muito vermelhas), se não há espinhas ou ossos metidos entre os dentes. Os sinais associados a problemas na boca são a salivação, mete as patas na boca, mastiga sem ter ingerido nada e pode deixar de comer, porque lhe dói.
Para limpar os dentes, a ração seca é um bom adjuvante.
- Olhos: Se estes estão avermelhados, com pus, lacrimejantes, baços ou esbranquiçados é porque há um problema. Um cuidado básico a ter é a limpeza dos olhos com soro fisiológico diariamente. Qualquer problema ocular requer a ida ao veterinário.
- Nariz: ver o corrimento nasal e a sua persistência. Por vezes parece que têm "gripe", espirram e têm febre e pode ser necessária a intervenção médica. De resto, o corrimento pode limpar-se com água morna.
- Orelhas: se o gato começar a abanar a cabeça, a coçar a orelha ou a inclinar a cabeça para um lado (pode até desequilibrar-se e cambalear) desconfiar que pode haver um problema no ouvido. Ver se a orelha está inchada, se cheira mal, ou se há "insectos" brancos no interior do ouvido. Conduzi-lo ao veterinário.
Pode limpar-se o pavilhão auricular com uma gaze humedecida (e bem espremida, para não verter água para o canal auditivo ) mas nunca usar cotonetes para limpar o ouvido!
- Peito: sinais de problemas são a tosse, espirros, a respiração ofegante e difícil.
- Estômago e intestinos: Ver se o animal tem vómitos, diarreia, obstipação, sangue ou parasitas nas fezes. Cuidado com as bolas de pêlo que tendem a causar alguns destes sintomas. Para este problema adicionar um bocadinho de azeite à comida de vez em quando, ou comprar um produto específico numa farmácia, por ex. A desparasitação é importante com uma regularidade de 4 em 4 meses com um desparasitante adequado para a espécie, que se compra numa farmácia, loja de animais etc
- Aparelho urinário: ver se o animal urina sem dificuldade (podem ser cálculos por ex., muito comuns em gatos castrados). Assegurar que o animal bebe água fresca e que a tem à disposição sempre que quiser. Quando este órgão é afectado os animais tendem a a emagrecer bastante e a ter muita sede.
- Aparelho genital: ver se há algum corrimento anormal e com mau cheiro.
Numa fêmea grávida pode ser sinal de aborto. Numa fêmea não grávida pode tratar-se de uma infecção grave. Se não se tencionar reproduzir o animal deve-se esterilizar as fêmeas e castrar os machos.
- Pele e pêlo: problemas neste compartimento orgânico incluem pêlo ralo e baço, comichão, feridas. Pode tratar-se de parasitas, fungos, por ex.
É importante desparasitar contra pulgas e carraças, cujos produtos são facilmente encontrados no comércio.
Evitar lavar o gato ( ele assegura muito bem a sua higiene!) e a ser necessário fazê-lo, usar produtos adequados à sua pele.

21/01/10

Pessoas que nos marcam

Não me lembro da primeira vez que o vi, mas a sua imagem povoou-me a infância e a adolescência, para depois se afirmar para o resto da vida, no rasto de uma memória indizível.
Quando nos cruzávamos sorria-me sempre e eu temia-o. Não um temor de quem se retrai pela austeridade ou despotismo de outrem, mas de quem se acanhava pela própria timidez, e sobretudo pela generosidade sublime daquele homem.
Eu era uma menina e ele já avô. Pouco me falava, para além daquele cuidado cordial que lhe assentava no rosto uma expressão afável. Por isso, quando um dia me chamou para dentro do consultório, não podia imaginar o que seria. Numa atitude quase solene pediu que me sentasse, tirou os óculos de sol que lhe cobriam uma extensa parte de um rosto triangular - ainda hoje, passados 20 anos retenho nitidamente a imagem do seu rosto - onde a fronte se destacava, sobranceiramente, a um sorriso espontâneo e genuíno.
- Soube que lês muito... - começou por dizer-me sem arredar o sorriso. Penso que lhe respondi cabisbaixa e em silêncio.
- Que é que tu lês ? - insistia ele, e eu não tive outra escolha senão a de responder, receosa de que censurasse o que lia, mas também expectante de que o aprovasse. Não fez nem uma coisa nem outra, limitou-se a dizer-me:
- Vou trazer-te alguns livros para leres, 1 ou 2 de cada vez. Se gostares, trago-te mais e até podes ir lá a casa escolher os que quiseres. - e como se o meu silêncio tímido, que o meu olhar traía, denunciando o meu imenso contentamento, lhe tivesse respondido, concluiu: - Dou-os à tua mãe para tos entregar, pode ser?

E cumpriu. No dia seguinte chegou-me às mãos o primeiro livro capaz de questionar e revolver o meu pequeno mundo: A cabana do pai Tomás! Era uma incursão diferente para mim, que até então lia os romances da época, de colecções de meninas exemplares ou de aventuras dos cinco e dos sete, e alguma poesia infantil... e eis que o pai Tomás me encheu de um sentimento novo, a revolta, e novos conceitos, o da igualdade, o da justiça...
E depois vieram mais livros.... Inês vai morrer foi o segundo, e deparar-me assim com a luta de uma mulher por um colectivo que se sobrepunha aos seus interesses individuais foi uma espécie de iniciação mágica pelos valores que viria a abraçar pouco depois.
Seguiram-se tantos outros nessa travessia, os romances do Júlio Dinis, as novelas do Erico Veríssimo, os livros do Eça, o mais célebre livro do Namora, a obra do Virgílio Ferreira, do Manuel da Fonseca, do Aquilino,do Jorge Amado, do Morris West e de tantos outros, culminando, para mim, no Máximo Gorki e no Soeiro Pereira Gomes. Pelo meio, a poesia, a que já antes entregava horas absortas, que se sumiam na contemplação de ideias e sentimentos, assim impressas por uma colagem de palavras que se transmutavam e percorriam a alma em corrupio, embalando-nos num ritmo, que não raras vezes, culminava num suspiro... ou numa lágrima.

Este homem, sem saber e talvez sem querer, determinou o meu trilho pelos anos que se seguiram até hoje, como se tivesse desenhado, naquele dia, toda a minha existência.
Por estes dias, recordo o último dia em que o vi ,antes de partir. Entrava sempre apressado no consultório, cingindo-se a um cumprimento breve a quem o esperava.
Perguntou-me:
- Como vai o curso?- Os anos haviam passado mas eu ainda me detinha perante a sua grandiosidade, não só corporal- O dr. Fernando era alto, esguio, com um cabelo de neve- mas sobretudo intelectual e humana. - Continuas a ler?- continuou ele. E acho que pela primeira vez consegui desvelar-lhe um grande sorriso, que naquele instante narrou e selou a cumplicidade que, enfim, nos unia: o mesmo IDEAL!

E por saber que ele gostava deste poema, mesmo sem alguma vez mo ter dito, é que hoje inscrevo aqui, para ele, para o Camarada Fernando M. Azeredo Pais (o Sr. dr. é comunista, repetia-me a minha mãe tantas vezes...), estes versos do Torga:

Rendição

Vem camarada, vem
render-me este sonho de beleza!
Vem olhar de outro modo a natureza
e cantá-la também

Ergue o teu coração como ninguém;
Fala doutro luar, doutra pureza;
tens outra humanidade, outra certeza:
leva a chama da vida mais além!

Até onde podia , caminhei.
Vi a lama da terra que pisei,
e cobri-a de versos e de espanto.

Mas, se o facho é maior na tua mão
vem camarada irmão,
erguer sobre os meus versos o teu canto.

20/01/10

Poesia


"Se às vezes, se em certos casos, a poesia imita a vida e a vida imita a poesia, então talvez cada verso seja uma linha da cabeça, uma linha do coração, uma linha da vida. E então, sonâmbula e feroz, a mão que escreve talvez não faça mais do que construir, palavra sobre palavra, a casa de um homem, a sua história. E a sua voz obscura passará sobre a terra, sobre os anos, completando a obra."
José Agostinho Baptista

16/01/10

CARÁCTER

ROTEIRO
Parar não paro
Esquecer. Esquecer não esqueço.
Se caráter custa caro
Pago o preço.
Pago embora seja raro.
Mas homem não tem avesso
e o peso da pedra eu comparo
à força do arremesso.
Um rio só se for claro.
Correr, sim, mas sem tropeço.
mas se tropeçar não paro
- Não paro nem mereço
E que ninguém me dê amparo
nem me pergunte se padeço.
Não sou nem serei avaro
- Se carácter custa caro
pago o preço
Sidónio Muralha

O poema que deu mote a este blogue. Uma mensagem de integridade que tem eco em tão raras pessoas... é que a coerência, a verticalidade, o carácter "custam caro" e "não têm avesso". E esse foi o roteiro escolhido por este homem ímpar que foi Sidónio Muralha.