16/08/10

O Francisco, no trilho das aves


Há pouco folheava um livro já lido, por gostar de revisitar memórias que os livros gravaram no meu percurso. Já terei tecido muitos comentários sobre este livro, porque é mesmo uma referência que pode ser lida sob vários prismas, que o cristalino de cada alma apreende. Percorre um período político onde homens extraordinários empunharam a própria vida para resgatar a Liberdade de um povo. Caminha sobre referências históricas e acompanha menções a outros livros, tão notáveis quanto este. Foram vários os marcos que se me gravaram por este livro, mas entre eles, hoje debruço-me sobre um que me fez, na altura (e ainda hoje) reflectir imenso: o dilema do perdão, ou mais concretamente, mediante uma traição execrável de um amigo (no caso descrito no livro) a capacidade estóica e firme de não se deixar corroer pelo rancor e revanchismo.

Francisco, o protagonista, cresce diante de nós, leitores, de início com a impetuosidade de quem se arroja veementemente contra a exploração a que os seus eram sujeitos, escravos de um regime déspota que dizimou tantos combatentes. Francisco era um homem movido pela paixão, que se expressava no empenho que dispunha nas suas causas e lutas, e pela exaltação de valores excelsos que a humanidade inventou como a Amizade, a fraternidade, a camaradagem...
Com o tempo, e é fascinante assisti-lo pela leitura e pelo exercício da imaginação concomitante, revemos no Francisco a maturidade que se vai edificando, não pelo passar dos anos, mas pelas suas leituras, pelas suas vivências, e pela entrega que devotou a um Ideal, onde se embarca a Amizade, e nesta, implicitamente, a Lealdade.
Das amizades que edificou, uma era-lhe particularmente especial, a do Luís. Se me recordo ainda, era porque este seu amigo, pouco mais velho, simbolizava para o Francisco um elo de partilha cúmplice na conivência com o gosto pela aprendizagem, pela discussão e pelo delineamento de estratégias de Luta em que ambos tomavam parte. O Francisco nutria pelo Luís uma admiração imensa que se firmava na camaradagem que os unia.

Um dia, "o cantar do galo fez-se ouvir" e talvez antes do terceiro som, o Luís atraiçoou o Francisco, covardemente, porque não o defrontou na assumpção do seu crime. E degradantemente, porque a vileza da traição a um amigo, preso, que ancorava a sua força e coragem na determinação das suas crenças, que incluíam um grande amor, que o melhor amigo lhe furtara pela surdina da sua mesquinhez, é um dos crimes morais que mais repugnam e definham o brio de um Homem.

Relatar o sofrimento do Francisco é inútil, pelas parcas palavras que existem para o descrever, e o quase abandono de si próprio nos corredores sombrios e gélidos de uma prisão, entre urros e gemidos que o lançaram, por fim, na solidão.
Mas a Amizade infunde-se nestes momentos e o Francisco, socorrido por quem o amava, os Amigos, lentamente foi-se reerguendo do torpor imposto por tanta, tanta dor...

Um dia, volvido muito tempo, anos, e quando já a sua vida se reafirmara no que sempre o movera, um Ideal de Luta em prol de multidões, tendo na mira a Liberdade e a Igualdade como valores supremos de uma sociedade mais justa e onde o esclavagismo, mascarado de tantas formas, seria abolido, reencontrou Luís, o amigo que julgara sê-lo...

E este momento é para mim, um dos mais marcantes do livro, pois aqui se expressou o expoente máximo de maturidade e humanidade que um ser humano, belíssimo, como o Francisco se fez, pode alcançar. Na divagação dos seus pensamentos ao longo dos anos que permearam este encontro, muitas eram as incertezas emotivas que assaltavam o Francisco. Ora dominava-o, ainda, uma tristeza imensa, de raíz profunda que a memória resgatava; por vezes a ira, mesmo que atenuada, se interpunha à luta interna que este homem debatia consigo mesmo no alcance da capacidade de perdão ao seu amigo, ao seu camarada... E eis que chegou o momento inevitável: o reencontro de amigos, que timidamente se defrontavam, também na sequência das responsabilidades partilhadas dentro do partido, e que em parceria assumiam obrigações que lhes haviam sido confiadas pelo mesmo.

Francisco perdoou Luís, o que não significava que doravante a amizade entre ambos se restabelecesse. Na verdade não seriam amigos. Mas qualquer rancor ou mágoa dissipar-se-iam para sempre de Francisco, conferindo-lhe a imensa liberdade da paz dentro de si.

Há feridas , que por mais que cicatrizem , não podem ser contornadas como se nunca tivessem sangrado. A dor tem o poder de minar a existência e inscreve-nos o destino (reescreve-o até), gravando-se dentro de nós, entre raízes tão fundas, que a memória, de ora em vez, revisita.
Mas ser capaz de perdoar e caminhar nos trilhos das aves como o Francisco, amenizam a compressão inquietante de sentimentos que dizimam a existência de cada um de nós.

Bem-hajam os Franciscos deste mundo!


Adenda: O livro de que falo, claro, é "O caminho das aves" de José Casanova.

3 comentários:

trepadeira disse...

Fiquei tão pequenino que nem consigo escrever.
Cordial abraço,
mário

svasconcelos disse...

Mário: O Franciso é um gigante que se fez no trilho da vida, e das aves. beijo,

Nelson Ricardo disse...

Aprender a perdoar é o garante da vida vivida com liberdade.

bjs.