07/11/09

Discurso tardio à memória de José Dias Coelho


Éramos jovens, falávamos do âmbar
ou dos minúsculos veios de sol espesso
onde começa o verão; e sabíamos
como a música sobe às torres do trigo.

Sem vocação para a morte, víamos passar os barcos,
desatando um a um os nós do silêncio.
Pegavas num fruto: eis o espaço ardente
do ventre, espaço denso, redondo, maduro,

dizias: espaço diurno onde o rumor
do sangue é um rumor de ave
-repara como voa, e poisa nos ombros
da Catarina que não cessam de matar.

Sem vocação para a morte, dizíamos. Também
ela, também ela não a tinha. Na planície
branca era uma fonte: em si trazia
um coração inclinado para a semente do fogo.

Morre-se de ter uns olhos de cristal,
morre-se de ter um corpo, quando subitamente
uma bala descobre a juventude
da nossa carne acesa até aos lábios.

Catarina, ou José - o que é um nome?
Que nome nos impede de morrer,
quando se beija a terra devagar
ou uma criança trazida pela brisa?


Eugénio de Andrade
Deparei-me com este poema no blogue "Cravo de abril", um dos que sigo por razões várias, que passam pela profundidade da poesia escolhida, pela identidade ideológica e não raras vezes pela contra-informação capaz de elucidar e contrapor a corrente informativa vigente, e, desde logo, achei que se enquadraria neste "Catarina de todos nós".
Ainda oiço dizer que a Catarina Eufémia é um mito enaltecido oportunisticamente, o que, no mínimo, me indigna. Uma mulher, jovem, analfabeta, assalariada rural, com três filhos, foi barbaramente assasinada com um dos filhos ao colo (!!) quando reivindicava , numa greve, a justiça do seu salário, ou seja, o "trabalho e pão" para os seus filhos, e ainda há quem ache que esta mulher foi mitificada?! Mas não é esta ceifeira, em si mesma, um ícone para todos os que se indignam com a injustiça salarial, seja ela de género ou de outra natureza qualquer?
José Dias Coelho, artista (a gravura, "Catarina Eufémia", escolhida para a apresentação do poema é de sua autoria) e intelectual, também ele um marco de lutas e resistência antifascista, foi, por isso, assassinado. A ele, Zeca Afonso dedicou a música : "A morte saíu à rua".
Bem-aventurados sejam as Catarinas e Josés deste mundo!

2 comentários:

Fernando Samuel disse...

... e os que, cantando-os, os trazem à nossa memória colectiva.

Um beijo.

svasconcelos disse...

Exacto:)
beijos,