04/03/11

O sítio mágico

Por que é que agora não existe um sítio mágico
como aqueles que eu tinha na infância? Serão eles
que não existem ou fui eu que os perdi? Ou será que o meu
olhar
já não entende de magia? Às vezes olho-me nos olhos
tentando desvendar-me, descobrir a verdade, mas sinto isso
tão idiota
como tentar comprar uma moeda
com outra absolutamente igual. Procuro ainda, mal esta vida
me vira as costas,
o erotismo de uma sombra num recanto afastado da luz,
a mistura de humildade e orgulho que me vem de uma
antiga relação com a terra,
a confirmação de que não me reconheço nem me aceito
fora de todos os sítios azuis, de privilégio. Procuro,
e é como se falasse aos sete anos a sós com a minha mãe,
depois de a desiludir: não posso ser tomado muito a sério.
Não sei até como reagirei se voltar a encontrar um sítio
assim,
depois de tanta falta de magia no mundo. Provavelmente,
de uma forma patética, como o judeu que em Dachau,
já sem lágrimas viu morrer ano após ano milhares de
crianças e homens e mulheres,
e não conteve o riso no dia em que foi libertado, quando
encontrou um funeral
onde centenas de pessoas choravam a morte de uma só.
Procuro ainda o sítio mágico e não sei se não acredito nele
ou se já não acredito em mim. Se a minha relação com o
mundo
é tão exposta como uma transmissão televisiva.
Procuro-o porque me sinto pontapear os horizontes
ou porque os horizontes estão tão fechados que embirram
com os meus pés.
Porque me sinto um amante cheio de lágrimas que não quer
deixar fugir o amor,
porque na minha memória não deixam de correr regatos que
hoje já não correm,
porque todos os dias, pontualmente, me sinto um saco
cheio de ofensas,
porque a língua que eu falo se debate como um peixe
náufrago,
porque os meus ombros suportam a noite e suportam o dia
e suportam a verdade do que eu digo,
porque me sinto carpinteiro e árvore ao mesmo tempo,
porque perto de mim e longe de mim há coisas que estão
para lá do meu alcance,
porque o tempo me recorda que a minha viagem está mais
próxima do fim,
porque vá para onde for não sinto minha nenhuma janela do
mundo,
porque estou cansado e quero respirar e o ar está cheio de
gritos,
porque há gente que eu amo nas minhas palavras tentando
libertar-se de mim,
porque me observo e me contradigo, porque tenho ainda
coragem para o espanto
e porque me falta o espanto, e me falta um sítio para o
espanto
e eu sei que para estar vivo terei de viver sem ele.


Joaquim Pessoa

3 comentários:

Maria disse...

O poema da busca do espanto...
Excelente Joaquim Pessoa!

Beijinho.

Fernando Samuel disse...

No último verso... a solução...

Um beijo.

svasconcelos disse...

Maria: compartilho-o contigo, é um dos poetas que gosto muito, muito...:) beijo,

Fernando Samuel: também pensei o mesmo:) Um beijo,