Gostava de me ensinar e , por ser ela, empenhava tanta atenção ao que me dizia que , ainda hoje, tenho o travo do arroz da minha avó e o alinhavo certo na roda das calças.
Tantas vezes rebuscava o seu passado de pobreza e tristeza, da lavoura que os seus pais lhe impuseram desde cedo, do casamento tardio que lhe fora imposto, dos filhos que lhe morriam à mão de um destino maldito, da viuvez precoce que a desamparou, do trabalho de toda uma vida que penhorou para fitar o futuro dos filhos. E se por vezes lhe pressentia nostalgia, ela dissipava-a logo com aquele sorriso tão franco e resoluto quando, ansiosa, lhe perguntava: "Avó... está triste?".
Outras vezes remexia no tempo em que cedo se lançava pelas serras rugosas da ilha para ordenhar a vaca e as cabras, pela manhã, e eu desvairava de alegria quando os personagens das suas histórias eram os animais: " Conte mais , avó!" e ela, motivada e feliz, lá me engrandecia o cão que a seguia pela madrugada até aos palheiros longínquos da sua infância.
Às vezes lia-lhe poemas e ela não os entendia, mas sorria muito e no fim compensava-me com um "Sabes ler bem...", e dizia-mo tão simplesmente que ainda hoje sinto a força de tamanha ternura. Um dia quis ensinar-lhe a escrever o seu nome e lembro-me de ter insistido repetidas vezes, guiando-lhe a mão com a minha (ah, a mão tão fina e pequenina da minha avó!) e rabiscando tantas vezes no papel: " Ge-or-gi-na" . Não conseguiu autonomia para o escrever sózinha, mas um dia pediu-me o lápis de carvão e desenhou-me um arado. Queria que eu soubesse como era o instrumento com que sulcara a terra, o mesmo que também lhe lavrara a vida.
Quando parti, anos depois, desgostei-a. Fez da minha ida um lamento sem consolo, mas em cada retorno meu partilhávamos os lanches no café da cidade, noutras tardes tão luzentes que lembravam outros tempos. Num desses regressos encontrei-a acamada e o seu olhar fulminou-me pela inexistência de um qualquer resquício da expressão branda e sensível de outrora. " A avó já não tem memória, não te reconhece", diziam-me. Era um corpo sem tempo, sem vigor... Mas nesse momento, foi tanto o meu pranto pela partida daquela que tanto me amara , que a minha convulsão despertou-a do torpor por um instante tão breve, que se tornou eterno: "Estás a chorar, Sílvia?"- e sorriu-me por uma última vez, sem que eu lhe conseguisse responder, e não disse mais nada!
Não voltei a vê-la e pouco tempo depois morreu, em casa, cuidada por filhos, noras e netos.
Quando oiço estas notícias de abandono de idosos, que nos últimos dias têm preenchido o nosso painel noticioso, indigno-me com a frieza e a indiferença que acometeu a nossa sociedade. Ostracizar assim os mais velhos, degredá-los ao abandono e maus-tratos são reflexo da podridão de um sistema que ostenta tudo menos a dignidade. Curiosamente, é nos países ditos de primeiro mundo, que os velhos deixam de servir e se tornam um fardo que urge descartar. Não me deveria surpreender, afinal é o fruto do apregoado capitalismo que, entre outras coisas, enaltece o novo enquanto fonte de rendimento facilmente moldável e rentável....e, quando velhos, descartável.
Que revolta!
7 comentários:
Bonito Camarada Silvia!Gostei!
Bonito Camarada Silvia!Gostei imenso!
Saudações fraternas.
É a enorme diferença entre quem ama as pessoas e quem apenas gosta de dinheiro.
Um abraço,
mário
Ui, que texto Sílvia, que bonitos sentimentos. E como me tocou.
Beijos amiga.
Belíssima memória! - e oportuno remate final.
Um beijo.
Sílvia,
Que bonito texto e que extraordinária sensibilidade aqui demonstrada.
Tocou-me muito, porque fui assim com os meus avós e, a m/mãe, que foi a avó dos m/s filhos, não teve essa ternura dos netos, o que fez de mim um filho desdobrado na pessoa dos outros parentescos, para tentar que ela não desse pelas ausências.
Alguém desejou convencer-me explicando-me que agora é assim. Mas não aceito!... como não aceito que estas coisas do abandono dos idosos em vida se mantenha até, como estamos assistindo... para além da morte.
Revoltante da parte das entidades oficiais, e inaceitável da parte dos familiares.
Um beijo muito grande!... a todos os níveis fico contente por seres tão responsável! É caso para dizer que vives em Paz com a tua consciência.
Obrigado por existires...
César
José jardim: bem-vindo:)) obrigada. beijo,
Mário: o capitalismo, como se sabe, só promove a segunda. Um beijo,
Armando: Obrigada. Cabe-nos ainda transmitir o mesmo respeito e afecto pelos mais velhos às novas gerações. beijo,
Fernando Samuel: enquanto as políticas sociais regridem, os nosso velhos são dos priemiros sacrificados. Eles, que já tanto deram ao país!... Um beijo,
César: As entidades oficiais são de uma irresponsabilidade e insensibilidade que só por isso deviam ser julgadas! E as famílias... de lamentar que, no fulcro da sociedade prossigam exemplos lamentáveis e cruéis de abandono..:( beijo,
Enviar um comentário