Voa esta canção sobre os caudalosos rios da manhã
e as montanhas da tarde. Voa como os majestosos pássaros
imperiais,
mas também como os pequenos beija-flor. Voa, voa, voa,
para chegar às tuas mãos como uma carta de amor
do tempo em que se escreviam cartas de amor.
Voa esta canção para o azul profundo e para o sol
porque as palavras continuam a adorar o sol como Akhenaton
e os imperadores incas.
É uma canção viva esta que os teus dedos podem festejar
na fronteira das horas em que a felicidade está onde menos
a esperamos
e a aventura começa quando temos de viver várias vezes a
nossa única vida
desempenhando o nosso papel e o dos outros, nós, nós outros,
nós nos outros,
quando as horas do destino falham depois de chamarmos e
avisarmos os anjos
de que não permitimos mais interferências no nosso livre
arbítrio.
Voa esta canção para o teu nome, para o nome do amor,
onde o coração preside a um reino de desejo que explode em
forças poderosas
e novas teorias que nunca fizeram parte de qualquer currículo
romântico.
E é possível que voe esta canção para os magros recantos onde
nada se prevê,
onde não existem planos, expectativas, profecias. Onde
a dança animal é como a dança das galáxias e nela coabitam
o falcão e a lebre, o lodo e as estrelas,
acatando os acasos da vida sem se deixarem enganar.
Onde a carta chegar, voa também a canção para a alegria da
árvore
e para o vento frio, nu e infeliz, que se queixa às ramagens,
para os braços dos camponeses cuja beleza floresce na terra,
e para a macieira que estende os braços para a luz,
para os teus grandes olhos luminosos onde a minha vida roda,
sufocante,
enamorada e inocente. Voa pela memória
a canção do sangue, a canção da água e da erva adolescente,
que veste a roupa e a carne dos noivos, dos velhos e daqueles
cuja bondade e perfeição
fazem parte das contas a ajustar num tempo de humilhação
acumulada
por todos os séculos e séculos de incompreensíveis e
fantásticas prostituições.
E voa pelas margens do teu corpo, esta canção, esta carta
onde escrevi para ti as mais belas palavras de amor,
quem sabe?, as mais sofridas e intensas palavras de desejo,
as menos pensadas, as menos justas, as que apenas foram
escritas com o corpo,
as que perante a conquista apenas se entregaram à recolha dos
despojos
quando era preciso parar para escutar uma palavra diferente,
a que irrompeu vitoriosa dessa luta corpo a corpo. E segue
esta canção para todos aqueles que me esperam, aqueles que
me amam
como eu amei um dia cada um dos minutos da infância,
esses minutos que tinham pai e tinham mãe e uma alegria
deslumbrada
e que eu deixei de reconhecer nos pássaros, no vento, na
conversa da água.
Voa então, também, esta canção para mim, carregado de feridas,
eu que já pouco tenho a dizer sobre a pulhice, a indignidade e o
desvario
daqueles que conduzem sem destino o destino de todos,
eu que para trás pouco deixo, a não ser filhos e um rasto de
palavras
irmãs desses irmãos que em cada oportunidade, em cada
fogueira, se aquecem e se esquecem,
à procura de um sentido e de um caminho que acaba por
levá-los ao ponto de partida,
protagonistas das maiores injustiças e das mais fundas cobardias
registadas na História do Homem pelos homens
que não têm história.
Joaquim Pessoa
in O POUCO É PARA ONTEM
(Litexa Editora, 2008)
A25A
Há 3 dias
6 comentários:
Linda a foto que acompanha o não menos bonito poema. E eu que andei ontem a fotografar gaivotas e afins...
Simplesmente belo
Bjs
O Joaquim Pessoa é, efectivamente, um Enorme Poeta!
Obrigada pela partilha.
Beijo.
Sempre bom rever o poema
e o poeta
Bjs
Grande poema de um grande poeta.
Um beijo.
Armando: foi sacada da net, não sei de quem é a autoria, mas também gostei:)beijo,
Puma: como o Joaquim Pessoa torna a poesia...Um beijo,
Maria: de acordo! Quanto mais o conheço, mais gosto dele! :) Um beijo,
Mar Arável:é incansável e compensador reencontrá-lo! beijo,
Fernando Samuel: se é!:) Um beijo,
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