30/07/10

Vida- António Feio


Há perdas que nos inquietam, sem termos exactamente a compreensão das causas que encetam essa perturbação, ao ponto do pensamento não se arredar dessa perda e divagar em questões nada apaziguadoras.
Só conheci António Feio (e o José Pedro Gomes)de relance, um mero cruzamento quase casual no contexto comum que nos unia: o teatro. Não ultrapassou umas horas (se tanto) em que se trocou a simpatia cordial de colegas da arte em comum ( que tanto amávamos) e, no meu caso, a escuta atenta de quem tinha muito a aprender com os dois. Dizer que os admiro profissionalmente é inevitável, são arautos de talento no género cómico teatral, sobretudo, que aliam a uma ironia cativante e crítica social certeira. Fazem-nos (faziam-nos, em parelha)rir de nós mesmos de uma forma tão sadia!

Mas além disso, a que o meu interesse não era alheio, ressaltou-me a cumplicidade evidente entre os dois, que se traduzia pela expressão mais sublime que a humanidade inventou: a Amizade! "sem condições, que essas só a estragam" e anulam. Como dizia José Pedro Gomes há minutos na televisão, a relação dos dois equiparava-se a um "casamento" onde a grande amizade ressaltava, aliada à reciprocidade do respeito e à evidência de grandes cumplicidades. E à partilha de grandes batalhas , profissionais e pessoais, acrescento eu.

Relembrar que António feio foi um modelo de luta pela vida, não chega. A doença que o acometeu é das mais fulminantes na retracção da vida que carregamos (ou nos carrega, já não sei...)e o António fitou-a durante mais de um ano! Não tenho dúvidas que foi a sua força, optimismo e humor( pelo qual era sobejamente admirado) que o sustentaram neste tempo e o retiveram entre nós. Aliado a isso, e é outra certeza que proclamo, a força (quase invencível) dos afectos na expressão do seu amor imenso pela família e amigos. Só o amor nos ancora na determinação da esperança, dos sonhos e das metas que traçamos!

Sem conhecer profundamente o António Feio, nem ter tido com ele qualquer elo de amizade, estou-lhe profundamente grata. Pelos ensinamentos profissionais, sim, mas sobretudo pela grandeza da sua mensagem , que prenunciava a partida anunciada:

" Aproveitem a vida,e ajudem-se uns aos outros. Aproveitem cada momento, e não deixem nada por dizer"

Acuo perante a dignidade deste carácter. A essência da vida são os afectos! Que se saiba preservá-los e contornar as divergências inevitáveis ( e não raras vezes produto de equívocos e emoções exacerbadas), usando-as como mote para o reforço dos elos que nos ligam. Não deixando de reafirmar o quanto amamos os que queremos, por mais arestas que se interponham entre nós...

Obrigada António Feio!

Petição para ler e... subscrever!

Assunto: Aprovação da Proposta para Alteração do estatuto jurídico dos animais no Código Civil apresentado pelo Ministério da Justiça


"Nós, cidadãos portugueses e do Mundo, que estendemos a nossa percepção racional, lógica e emotiva, aos restantes habitantes de Portugal e do Mundo, tomamos lamentavelmente conhecimento que o Código Civil Português reconhece como mera propriedade – como coisas – os animais. Assim, somos a comunicar-lhes a nossa profunda indignação pela forma simplista como a Lei NÃO prevê o tratamento ético dos animais.
Mais grave ainda é verificar que a Proposta apresentada em Maio de 2008 pelo Ministério da Justiça, foi tão pouco divulgada que corre neste momento o risco de ser arquivada por falta de apoio. Proposta essa que visa atribuir aos animais um estatuto diferente do das coisas, introduzindo o conceito (já há muito devido) de animal como ser sensível, e aproximar-nos juridicamente da realidade social que vivemos.
Estão V/Exas dispostas a correr o risco de lhes ser imputada a responsabilidade deste “Veto de Bolso”?

Embora a linguagem jurídica preveja “usos” para a linguagem corrente que não os que são usualmente empregues, não é uma linguagem fechada. Não atribui sentimentos ou denotações aleatórios, respeita a conotação que se tem como implentada, aceite e acessível. É possível distinguir entre “coisa” e “ser” de forma clara, seja em linguagem jurídica ou nas palavras de um leigo. Nem há tão pouco tempo discutiu-se de forma (por vezes redutora e simplista) a interrupção voluntária da gravidez... Discutiu-se o “instante” da criação de vida, discutiu-se “homicídio”, discutiu-se “personalidade jurídica”, discutiu-se direito à vida, direito de opção, direito a não fazer um nascituro pagar pela inconsciência dos progenitores... Em suma, lutámos pela nossa consciência, pela vida de nascituros e sobrevivência de famílias. Como é possível que tudo isso se esqueça e se abdique do direito a serem reconhecidas como SERES VIVOS E SENSÍVEIS, criaturas que fazem parte do nosso planeta, da nossa vida, do nosso imaginário. Sua Exa., o Sr. Presidente da República, disse, a 20 de Novembro de 2009, na sessão de abertura da última etapa do programa do Ano Internacional do Planeta Terra, «Não somos donos da terra, mas apenas seus hóspedes transitórios». Devemos, portanto, depreender que o planeta é uma coisa, os seus ecossistemas são outra?!

Nas escolas sensibilizamos as nossas crianças para o cuidado com o único planeta que temos e tudo o que o constitui, atribuímos medalhas de ouro ao nosso zoo. Cavalos, gatos, cães, golfinhos, etc., são usados como ferramentas pedagógicas e terapêuticas no trabalho com crianças e adultos com deficiências. Temos cães guia e de guarda. Os treinadores de cães-cadáver e de socorro reconhecem a necessidade de encenar situações de socorro bem sucedidas em palcos de tragédias, para evitar que os animais fiquem deprimidos. Há gatos que não abandonam a campa dos donos, cavalos que morrem de corações partidos por mudarem de mãos, pássaros que enlouquecem por falta de contacto e carinho... Terá alguém vivido sem nunca ter contacto com um animal? ... Aquela, que é uma característica indissociável do animal irracional: a inocência... Conseguirá alguém, genuinamente, IGNORÁ-LA? Depois de décadas destas realidades espalhadas pelo mundo, justifica-se que a Proposta de 2008 ainda esteja em estudo?!

Todos os Verões há campanhas de sensibilização contra o abandono de animais de companhia e os canis estão lotados... Todos os dias é possível ter conhecimento de mais uma campanha de adopção, vacinação, chipagem e esterilização. Nada disto instituído, nada disto como parte de uma engrenagem estatal. Se a regulamentação não existir, se a legislação não for adequada, o seu incumprimento sai impune.

É possível assistir a um programa britânico, chamado “Hospital dos Animais”, num dos canais da SIC. Neste, acompanhamos as (várias!) equipas da RSPCA (Royal Society for the Prevention of Animal Cruelty) nas suas saídas de inspecção e socorro. Vamos realmente esquecer uma proposta e colocar-nos novamente atrás da realidade humana de outros países? Sabe V/ Exa que um animal que tenha sido atropelado e que resista, não é visto por nenhum dos serviços de emergência (Bombeiros, polícia, protecção civil) como uma emergência, que o seu transporte e tratamento ou eutanásia fica ao cargo de quem dele se compadecer, que nenhum serviço de veterinário é comparticipado (e em casos pode rondar os milhares de euros), e que o seu enterro – se o cidadão não tiver algumas centenas de que se possa desfazer – é um risco de saúde, ilegal (mesmo que seja dentro de propriedade própria) e está sujeito a avultada coima? Por outro lado, a pena por agressão de um cão a uma pessoa é morte... Um pedófilo – o necrófago, o mais baixo parasita da metafórica cadeia alimentar criminal – não sofre tal sina.

Não há vacinação obrigatória para cadeiras. Não há escolas de educação para electrodomésticos. Os sapatos não têm seguro de responsabilidade civil, de saúde... Os automóveis não fazem companhia.

Quando foi a última vez que um agrafador os fez sorrir?... Por muito bem que agrafe...!

Em biologia, um organismo é um ser vivo. Portanto, um ser vivo é um qualquer organismo vivo e animado (animal ou planta). Os animais são tanto Seres Vivos como os seres humanos: não são propriedade! Foi exactamente esta a permissa que fundamentou a abolição da escravatura.

Reiteramos: a aprovação da supramencionada proposta de 2008 é fundamental. Adiá-la não é aceitável.

Pedimos a V.Exas. a aprovação da Proposta apresentada em Maio de 2008 pelo Ministério da Justiça, o mais brevemente possível de maneira a que os seres humanos possam de uma vez por todas perceber que os animais não são “coisas” nem brinquedos com os quais se pode brincar e depois deitar fora. "

Para assinar a petição: http://www.peticaopublica.com/?pi=P2010N2409

29/07/10

Cavalo de Tróia

Nosotros


Uma parelha soberba!, que empresta emoção e afectividade à arte.
Lindo!

27/07/10

Eu queria (muito!) ver este Povo a lutar... :(

Vazio...


Há tempos em que é o vazio que dita o caminho.
Tudo esmorece em redor, e o consolo das ondas do mar, aqui tão perto, não se ergue na carícia do alento.
Os passos ousam o trilho da saudade.
O suplício murmurante desta dor, enraiza o pranto que não se cala.
E os sonhos retornam ao dia em que pude esperar e... lutar!, na identidade de um ser que me era igual.
Aqui, nesta orla onde a razão deambula, perpassa apenas a dor, que se decifra no tormento da partida.

Na berma desta enseada, a cair sobre o mar, discorrem as memórias doces que levaste. E só as lágrimas bravias recordam a vastidão desta dor...

De um navio se enceta a despedida. E ao alto, uma cagarra, envolta num poema que não pude cuidar, gritará ao infinito o colosso deste afecto, que não soube escrever...

25/07/10

O menino gigante


A dor sulcou-lhe dois vincos no rosto. Quando uma lágrima insistente lhe causticou o sorriso que outrora ostentava, o torpor acompanhou-a e prostrou-a.
Fulminou-a um brilho que supôs a promessa dos seus anseios, pelas palavras de um Homem que imprimira com o grande "agá" (H). Soltaram-se odes que a paixão ecoou e as laudes de um amanhecer que descaía na partilha do Ideal. Depressa se fez prisioneira de uma quimera onde o afecto, a verdade, a lealdade e a frontalidade se aparentavam na confluência de dois seres que, afinal, não existiram.

O Homem fez-se menino, e ao invés da promessa que um dia discorreu da doçura dos seus lábios, vagueou na atrocidade de silêncios e mentiras, quais punhais lapidares, que a desertaram na eternidade... Não foi solitária nessa dor. O menino devastava sentimentos, semeava sofrimentos, nos trilhos sinuosos onde se moveu como um predador. E aos protestos - tantos!, e aos urros da dor irreprimível de tanta gente, convertia o discurso em proveito próprio, vitimizando-se. Depois recolhia-se num mundo impenetrável, carregado de frieza e revanchismo, de tristeza e solidão.
Como a fugir...

Por tantas vezes seguiu-o. O olhar que lhe devotava vislumbrava-o, apesar de tudo, como um menino agigantado pela carência dos afectos que repudiou. Na resiliência da alma que tinha, debateu-se por si e por tantos outros, empunhando a revolta, o grito que bradava a força da sua crença. Mas também se perdeu no impropério violento e corrosivo que lhe minou a razão. Era um menino, afinal: as emoções apropriavam-se brutalmente do seu ser, sem a antevisão de consequências, nem tão pouco das susceptibilidades e filigrana dos sentimentos alheios.

Amou-o, porém, na plenitude das suas imperfeições. Mas também na convicção de que no âmago deste homem, era um menino gigante que se avultava. Soubesse alguém amá-lo, soubesse ele deixar-se amar...e a grandeza da sua alma emergeria dos escombros tumultuosos, onde se quer perder.

Sem deixar de o entrever, ela partiu.
Mas estará sempre onde, só ele, a saberá encontrar...

"A saúde mental dos portugueses"

Transcrição do artigo do médico psiquiatra Pedro Afonso, publicado no Jornal
Público, 2010-06-21

"Alguns dedicam-se obsessivamente aos números e às estatísticas
esquecendo que a sociedade é feita de pessoas.

Recentemente, ficámos a saber, através do primeiro estudo
epidemiológico nacional de Saúde Mental, que Portugal é o país da
Europa com a maior prevalência de doenças mentais na população. No
último ano, um em cada cinco portugueses sofreu de uma doença
psiquiátrica (23%) e quase metade (43%) já teve uma destas
perturbações durante a vida.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque assisto com
impotência a uma sociedade perturbada e doente em que violência,
urdida nos jogos e na televisão, faz parte da ração diária das
crianças e adolescentes. Neste redil de insanidade, vejo jovens
infantilizados incapazes de construírem um projecto de vida, escravos
dos seus insaciáveis desejos e adulados por pais que satisfazem todos
os seus caprichos, expiando uma culpa muitas vezes imaginária. Na
escola, estes jovens adquiriram um estatuto de semideus, pois todos
terão de fazer um esforço sobrenatural para lhes imprimirem a vontade
de adquirir conhecimentos, ainda que estes não o desejem. É natural
que assim seja, dado que a actual sociedade os inebria de direitos,
criando-lhes a ilusão absurda de que podem ser mestres de si próprios.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque, nos últimos quinze
anos, o divórcio quintuplicou, alcançando 60 divórcios por cada 100
casamentos (dados de 2008). As crises conjugais são também um reflexo
das crises sociais. Se não houver vínculos estáveis entre seres
humanos não existe uma sociedade forte, capaz de criar empresas
sólidas e fomentar a prosperidade. Enquanto o legislador se entretém
maquinalmente a produzir leis que entronizam o divórcio sem culpa,
deparo-me com mulheres compungidas, reféns do estado de alma dos
ex-cônjuges para lhes garantirem o pagamento da miserável pensão de
alimentos.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque se torna cada vez
mais difícil, para quem tem filhos, conciliar o trabalho e a família.
Nas empresas, os directores insanos consideram que a presença
prolongada no trabalho é sinónimo de maior compromisso e
produtividade. Portanto é fácil perceber que, para quem perde cerca de
três horas nas deslocações diárias entre o trabalho, a escola e a
casa, seja difícil ter tempo para os filhos. Recordo o rosto de uma
mãe marejado de lágrimas e com o coração dilacerado por andar tão
cansada que quase se tornou impossível brincar com o seu filho de três
anos.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque a taxa de
desemprego em Portugal afecta mais de meio milhão de cidadãos. Tenho
presenciado muitos casos de homens e mulheres que, humilhados pela
falta de trabalho, se sentem rendidos e impotentes perante a maldição
da pobreza. Observo as suas mãos, calejadas pelo trabalho manual,
tornadas inúteis, segurando um papel encardido da Segurança Social.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque é difícil aceitar
que alguém sobreviva dignamente com pouco mais de 600 euros por mês,
enquanto outros, sem mérito e trabalho, se dedicam impunemente à
actividade da pilhagem do erário público. Fito com assombro e
complacência os olhos de revolta daqueles que estão cansados de
escutar repetidamente que é necessário fazer mais sacrifícios quando
já há muito foram dizimados pela praga da miséria.

Finalmente, interessa-me a saúde mental de alguns portugueses com
responsabilidades governativas porque se dedicam obsessivamente aos
números e às estatísticas esquecendo que a sociedade é feita de
pessoas. Entretanto, com a sua displicência e inépcia, construíram um
mecanismo oleado que vai inexoravelmente triturando as mentes sãs de
um povo, criando condições sociais que favorecem uma decadência
neuronal colectiva, multiplicando, deste modo, as doenças mentais.

E hesito em prescrever antidepressivos e ansiolíticos a quem tem o
estômago vazio e a cabeça cheia de promessas de uma justiça que se
há-de concretizar; e luto contra o demónio do desespero, mas sinto uma
inquietação culposa diante destes rostos que me visitam diariamente."

Pedro Afonso

Médico psiquiatra

18/07/10

Até logo


Amigos, formações, trabalho e ,se possível, descanso.

15/07/10

CÃO


Cão passageiro, cão estrito,

cão rasteiro cor de luva amarela,

apara-lápis, fraldiqueiro,

cão liquefeito, cão estafado,

cão de gravata pendente,

cão de orelhas engomadas,

de remexido rabo ausente,

cão ululante, cão coruscante,

cão magro, tétrico, maldito,

a desfazer-se num ganido,

a refazer-se num latido,

cão disparado: cão aqui,

cão além, e sempre cão.

Cão marrado, preso a um fio de cheiro,

cão a esburgar o osso

essencial do dia a dia,

cão estouvado de alegria,

cão formal da poesia,

cão-soneto de ão-ão bem martelado,

cão moído de pancada

e condoído do dono,

cão: esfera do sono,

cão de pura invenção, cão pré-fabricado,

cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,

cão de olhos que afligem,

cão-problema...

Sai depressa, ó cão, deste poema!

Alexandre O`Neill

Há muito que não revisitava este poema. Um poema com ritmo, aparentemente caricato , mas que denuncia satiricamente a nossa existência.
Em outra análise, a "vida de cão" que levamos...

13/07/10

Abandono de animais

Não é demais alertar sobre este tema, ainda mais numa estação onde se verifica o pico deste abandono. As férias têm "justificado" o aumento de animais errantes.
Podia discorrer sobre o perigo, em termos de saúde pública, que os animais de rua representam, mas o que me incitou a este post foi mesmo a situação deplorável e infra-humana com que se tratam tantos animais.
Na minha actividade deparei-me com histórias inimagináveis decorrentes de maus tratos e negligência. Em comum, todos estes animais tinham aquele brilho triste e lacrimejante no olhar, tão terno e suplicante, tão assustado e desencantado...
Não é obrigatório que todos lhes devotemos a mesma profundidade de afecto, mas é imperativo que lhes prestemos o respeito que merecem, e asseguremos o seu acesso à alimentação, que é o básico da sua subsistência. Cabe, nesta responsabilidade, às autoridades sanitárias e autarquias, a provisão de alimentos, mantimentos e medicamentos a instituições e particulares que, estóica e dignamente, têm assegurado um lar (provisório, ou mesmo para a vida) a milhares e milhares de animais.
Para elas, a minha admiração e gratidão.

Este é um nº nacional para a protecção de animais ao qual se pode recorrer em situações de emergência ou mesmo de dúvida:
21 3217000

11/07/10

Ode ao gato


Os animais foram
imperfeitos,
compridos de rabo, tristes
de cabeça.
Pouco a pouco se foram
compondo,
fazendo-se paisagem,
adquirindo pintas, graça, vôo.
O gato,
só o gato
apareceu completo
e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.
O homem quer ser peixe e pássaro
a serpente quisera ter asas,
o cachorro é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser só gato
e todo gato é gato
do bigode ao rabo,
do pressentimento à ratazana viva,
da noite até os seus olhos de ouro.
Não há unidade
como ele,
não tem
a lua nem a flor
tal contextura:
é uma coisa só
como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno
firme e sutil é como
a linha da proa
de uma nave.
Os seus olhos amarelos
deixaram uma só
ranhura
para jogar as moedas da noite
Oh pequeno
imperador sem orbe,
conquistador sem pátria
mínimo tigre de salão, nupcial
sultão do céu
das telhas eróticas,
o vento do amor
na intempérie
reclamas
quando passas
e pousas
quatro pés delicados
no solo,
cheirando,
desconfiando
de todo o terrestre,
porque tudo
é imundo
para o imaculado pé do gato.
Oh fera independente
da casa, arrogante
vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico
e alheio,
profundíssimo gato,
polícia secreta
dos quartos,
insígnia
de um
desaparecido veludo,
certamente não há
enigma
na tua maneira,
talvez não sejas mistério,
todo o mundo sabe de ti e pertence
ao habitante menos misterioso,
talvez todos acreditem,
todos se acreditem donos,
proprietários, tios
de gatos, companheiros,
colegas,
discípulos ou amigos
do seu gato.
Eu não.
Eu não subscrevo.
Eu não conheço o gato.
Tudo sei, a vida e seu arquipélago,
o mar e a cidade incalculável,
a botânica,
o gineceu com os seus extravios,
o pôr e o menos da matemática,
os funis vulcânicos do mundo,
a casaca irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.
Minha razão resvalou na sua indiferença,
os seus olhos têm números de ouro.

Pablo Neruda

Nota: A foto anexada a este post é de um gato que se chama Camões, e foi surripiada ao blogue "O Cantigueiro", há uns tempos.

10/07/10

Partilha : Al Di Meola

Uma descoberta recente (para mim), que trabalhou com Chick Corea e Paco de Lucia, entre outros. Tem composto muita música de fusão, com grande influência latina.

08/07/10

Canção Combatente


...porque hoje, também, é dia de luta:
De tudo despojados,
é tudo, sem excepção, que desejamos.
Nunca tivemos nada.
Por isso, tudo termos
o aceitamos só
como tido por todos, para todos.
Uma simples dentada
numa maçã me sabe
melhor, se ao dá-la, outros evoco
outras maçãs mordendo,
ou um copo de vinho
me retempera mais,
quando em comum bebido,
ou uma canção
entoá-la
mais mo apetece em coro,
ou, até, morrer, companheira minha,
mo há-de ser menos custoso
contra o teu quente e afável peito.
Isto, que vale pouco,
para nós tudo vale.
Nunca nenhum de nós
se sentiu solitário.
E se a algum de nós cabe,
ocasionalmente, ter algo mais que dar,
maior o é, em troca,
a sua ocasional satisfação.
Por prémio chega-nos
nunca termos prémio,
senão na nossa própria consciência,
em nós moldada
por activa opção
em colectivo brado
de uma carne e de um sangue colectivos,
alheia a deuses mortos e empalhados,
jurados como espírito por escárnio,
como ídolos de humana forma impostos.
(...)
Armindo Rodrigues

06/07/10

História do Sr. Mar


Deixa contar...
Era uma vez
O senhor Mar
Com uma onda...
Com muita onda...

E depois?
E depois...
Ondinha vai...
Ondinha vem...
Ondinha vai...
Ondinha vem...
E depois...

A menina adormeceu
Nos braços da sua Mãe...

Matilde Rosa Araújo

Há uns anos, debruçada sobre o mar que povoou tantos delírios e tormentos da minha infância, lia este poema... E adormeci, no resguardo de um futuro que viria, quando, um dia, dobrei o (meu) horizonte.
A Matilde Rosa Araújo foi tantas vezes a inspiração da minha infância, quando a sustinha em palavras doces, quando me acariciava com os seus poemas, e contos.
Foi por ela (e pelo Sebastião da Gama...) que durante outros anos quis ser professora de português.
Não o fui, as ciências fitaram-me, mas ainda hoje, são os poemas e as palavras que me embalam.
Como as ondas.

Bem-hajam, as Matildes da nossa infância!!

05/07/10

Cadela amamenta gato na China

Porque estas notícias me enternecem (ao rubro!), partilho-as:
Uma cadela convive diariamente com um gato na mesma casa e inclusive alimenta este com o seu leite, na província de Mapu, na China.

A dona resolveu adoptar o gato recém-nascido, no momento em que a cadela se preparava para dar à luz, e ambos se entenderam "às mil maravilhas".
As quatro crias da cadela não se importam com o ‘rival’ no momento da amamentação.
“Às vezes, quando os filhotes estão a mamar, o gato arranja um espaço para ele e consegue alimentar-se também”, informou a dona dos animais, Li Dajie, ao jornal ‘Guilin Evening Post’.

* Notícia do Correio da Manhã Online, de hoje, 5/07/2010

04/07/10

Porque (também) Vale a Pena Lutar!


Para os que fingem não ver, não querem saber , assobiam para o lado e acham que as Lutas são inúteis e passeios de lunáticos.
Ou simplesmente para os que têm medo ou se sentem acorrentados, como na imagem...
É claro que o sentido da luta é mais profundo, global e colectivo, mas Brecht não podia ser mais "sagitífero". Eis o poema:

Primeiro levaram os comunistas,
Mas eu não me importei
Porque não era nada comigo.

Em seguida levaram alguns operários,
Mas a mim não me afectou
Porque eu não sou operário.

Depois prenderam os sindicalistas,
Mas eu não me incomodei
Porque nunca fui sindicalista.

Logo a seguir chegou a vez
De alguns padres, mas como
Nunca fui religioso, também não liguei.

Agora levaram-me a mim
E quando percebi,
Já era tarde.

Bertolt Brecht

03/07/10

Despotismo

Texto de António Godinho Gil, publicado em "Boca de Incêndio", que urge divulgar, pela denúncia de uma situação que envergonha os pressupostos da democracia!

A Fundação Trepadeira Azul, instituição que tem desenvolvido um trabalho notável sobretudo em áreas ambientais, está sediada na Quinta de Santo António, freguesia de Aldeia viçosa, concelho da Guarda. No passado domingo, aí promoveu um concerto de música erudita, pelo grupo "Capela Egitanea". Porém, quem ao local acorreu, deparou-se logo à entrada do recinto com uma situação insólita: o Presidente da junta de Freguesia Local, Baltasar Lopes, acompanhado de alguns comparsas e completamente alterado, gesticulava e vociferava contra a realização do concerto, anunciando o seu boicote ao som das vuvuzelas. Ao mesmo tempo, ameaçava a Direcção da Fundação com represálias de todo o tipo. E até o público que se dispunha a assistir ao espectáculo. As "razões" apresentadas pelo edil para o seu comportamento diziam respeito a questões judiciais passadas, havidas entre a Junta e a Fundação. Pelo caminho, ia erguendo uma série de impedimentos administrativos, completamente infundados, à realização do concerto. Apesar dos repetidos apelos à contenção, o autarca manteve o seu propósito. De modo que as vuvuzelas se fizeram soar ao longo do espectáculo. O desenrolar dos factos foi presenciado pela GNR, chamada ao local, mas que nada fez para impedir o sucedido.
Entretanto, a história é denunciada no dia seguinte pelo Américo Rodrigues no seu blogue "Café Mondego", cujo texto convido a ler. Como verão, os factos são relatados na primeira pessoa, pois o autor esteve presente no concerto e são recheados de abundantes pormenores.
Mas o episódio não termina por aqui. Logo na terça feira, Baltasar Lopes apresentou uma "proposta" na sessão respectiva da Assembleia Municipal (de que é membro por inerência, sendo presidente de uma Junta de Freguesia, para quem não sabe), no sentido de ser diminuído em 20% o apoio da Câmara ao Teatro Municipal da Guarda. A proposta foi posta à votação, tendo sido aprovada com os votos de toda a oposição (*) e parte do PS. Não enquanto resolução, mas como "recomendação". Sem qualquer propósito vinculativo para o executivo, portanto. Durante a discussão, houve ainda tempo para um "iluminado" presidente de junta fazer incluir na proposta o encaminhamento da verba assim "recuperada" para as Juntas de Freguesia. Até ao momento, não houve ainda qualquer reacção por parte da estrutura concelhia do PS. Sabendo-se que Baltasar Lopes, embora independente, foi eleito com o apoio dos socialistas. Por outro lado, Américo Rodrigues denunciou o episódio em primeira mão e da forma veemente que se lhe reconhece. O que levou a que fosse visado de duas formas: como Director do TMG, pela insólita iniciativa descrita; pessoalmente, através de insultos e ameaças que afirma ter recebido a partir de então.
(...)
(*) Pelo que me foi possível saber, a CDU não votou esta proposta!

Chucho Valdés


Uma referência na música popular cubana, e não só. Sobretudo, um grande pianista!

01/07/10

Bondade


''Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele ou por sua origem, ou sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender. E se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar, pois o amor chega mais naturalmente ao coração humano do que o seu oposto. A bondade humana é uma chama que pode ser oculta, jamais extinta''.
Nelson Mandela
Ainda a propósito, julgo ter sido Saramago quem proferiu algo assim :
" Falta ainda, ao Homem, a maior das revoluções : a da Bondade"
Negrito
E ainda, Brecht:
Em vez de serdes só bondosos , esforçai-vos por criar um amanhã que torne possível a bondade, e melhor, que a faça supérflua!